“O Anarquismo e a questão das mulheres”, Mariana Affonso Penna
O Anarquismo é essencialmente feminista?
O Anarquismo é decerto a corrente do pensamento político socialista mais mitificada e idealizada em inúmeros escritos, ainda que também uma das mais estereotipadas e difamadas. Dentre as formas de idealização do anarquismo está a de retirá-lo da sua realidade histórica e geográfica transmutando-o em um fenômeno atemporal e universal.
Conforme afirma George Woodcock, muitos pensadores anarquistas buscaram atribuir sua genealogia a períodos bastante remotos da humanidade. Este seria o caso de Piotr Kropotkin, por exemplo, quando apresenta a história humana dividida em duas tendências, uma voltada para o apoio mútuo e outra para o autoritarismo, sendo o anarquismo, logicamente, correspondente à primeira destas tendências (WOODCOCK, 2007: 38-39).
Buscar no passado antecedentes para ideias e valores abraçados, valendo-se inclusive da noção de uma espécie de “natureza humana” é uma forma de legitimação desses princípios político-ideológicos de forma a afirmar a viabilidade dos mesmos. Mas para desenvolver uma análise histórica do anarquismo é preciso não nublar a análise de um fenômeno histórico específico dissolvendo-o numa noção de existência abstrata e atemporal.
Woodcock inicia seu prólogo ao volume 1 das Histórias das Ideias e Movimentos Anarquistas com a seguinte preocupação:
“Todo aquele que contesta a
autoridade e luta contra ela é um
anarquista”, disse Sebastien Faure.
A definição é tentadora em sua
simplicidade, mas é justamente
dessa simplicidade que devemos
precaver-nos ao escrever uma
história do anarquismo.
(WOODCOCK, 2007: 7)
Afirma assim a necessidade de delimitar uma conceituação do Anarquismo a fim de melhor entendê-lo. Mesmo dando este passo importante, posteriormente, diversos autores consideram ainda demasiada abrangente a definição aplicada pelo autor em sua Histórias das Ideias e Movimentos Anarquistas.
Lucien Van Der Walt e Michael Schmidt (2009) preocuparam-se em demarcar historicamente o anarquismo, percebendo sua formação no final do século XIX, mais especificamente no final da década de 1860. Destacam ainda o contexto histórico mais amplo em que se insere, assim como a íntima relação estabelecida entre as ideias libertárias e o movimento social concreto desenvolvido por operários e outros setores das classes populares em luta em variadas localidades do mundo. A mesma linha de compreensão seguiram Rafael Viana e Felipe Correa (2014, 2013) para quem mais que definir que pensador seria ou não anarquista, como o faz Woodcock, seria importante entender o movimento anarquista em sua concretude, criado na ação cotidiana de milhares de anônimos. Não cabe aos objetivos estabelecidos para este artigo aprofundar a discussão sobre a formação histórica do anarquismo, nem tampouco atribuir-lhe uma conceituação precisa. Tal tarefa foi desempenhada, dentre outros, pelos autores citados no parágrafo anterior. A intenção é desenvolver uma breve e introdutória reflexão sobre a relação entre o Anarquismo e o Feminismo, destacando algumas de suas aproximações e distanciamentos. Mas para isso, é justamente necessário fugir à tentadora simplificação que Woodcock retoma em Sebastian Faure ao associar o anarquismo a toda forma de manifestação e luta contra a autoridade, contra qualquer opressão. Isto porque o anarquismo não é uma ideologia etérea, mas como fenômeno político e social concreto possui sua historicidade. Assim, ainda que a ideia de uma “luta contra qualquer forma de opressão”, comumente associada à ideologia anarquista, pareça apontar para uma “tendência natural” de crítica ao machismo – e de fato observamos em diversas/os pensadoras/es anarquistas uma preocupação com relação à dominação masculina sobre as mulheres nas sociedades patriarcais – este artigo sustenta que é necessário ir além de uma interpretação simplificadora caso desejemos entender historicamente a relação entre o anarquismo e o feminismo. Argumenta, portanto, tratarem-se de fenômenos distintos, ainda que não necessariamente sempre separados. Dessa forma, sustenta-se que seria equivocado pensar o anarquismo como uma ideologia essencialmente feminista. Ao contrário, é um pensamento político encarnado em movimentos sociais concretos que podem se aproximar – e efetivamente se aproximam – do feminismo, mas não invariavelmente. Devido à preocupação historicamente manifesta no movimento anarquista no que diz respeito às assimetrias não apenas econômicas, mas de poder, é possível perceber uma grande abertura nesta corrente do pensamento socialista para a luta contra o machismo. Mas esta afinidade, que podemos entender em termos de uma afinidade eletiva, nem sempre se expressou no movimento concreto. Como ocorreu (e ocorre) em todo o movimento socialista, a opressão de gênero ainda que vista, hegemonicamente, como um problema a ser enfrentado, foi diversas vezes secundarizada – quando não até naturalizada e defendida – em meio a uma militância constituída por maioria masculina.