Uma crítica ao anarco primitivismo
Alguns companheiros anarquistas concordam comigo que o anarco primitivismo tem um grande acerto que é a crítica à civilização, mas discordam de mim quando critico-os pela forma com que trabalham a negação da tecnologia e a louvação ao primitivo. Alegam que é perda de tempo tentar convencer a humanidade que o primitivo é melhor, mas concordam com o anarco primitivismo em muitas análises.
A questão não é a perda de tempo de convencer a humanidade que o primitivismo é melhor, a questão começa pelo problema de defender um primitivismo que ecoa evolucionismo social, e que ecoa hierarquização baseada na divisão entre civilização e primitivo com alternância entre ambos do topo de uma pirâmide de evolução.
Acho que sim, precisamos defender uma revisão de valores no sentido de absorver valores quechua, maori, guarani, mas sem considerá-los primitivos e nem jogar fora todos os valores da cultura ocidental.
Até porque a anarquia é parte dos valores da sociedade ocidental. Sem considerar que a própria análise do Zerzan parte de uma visão distorcida da análise antropológica, ele a mitifica, a analisa sob o ponto de vista etnocêntrico, ecoa Rosseau, mas séculos depois e com acesso a uma crítica da visão de hierarquização entre sociedades.
Zerzan parte de leituras de antropologia que relatam modos de vida libertários das tribos caçadoras coletoras? Coloca que mesmo algumas que praticam agricultura não tem estado e praticam comunismo primitivo? Coloca que eles não são maus e egoístas como a direita diz dos selvagens?
Bacana, mas como Jack vamos por partes. Tribos? Cara, dói na alma ler “tribos”. Sabe por quê? Porque é uma classificação genérica de organizações sociais a partir de categorias etnocêntricas do Século XIX. Pior, isso continua na lógica de classificação de etnias como caçadoras/coletoras.
Cara, não existe essa lógica de qualificação de etnias e civilizações como caçadoras/coletoras. Essa classificação é anacrônica e é uma lógica que ignora um sem número de fatores. Que antropólogo classificaria modos de vida libertários das “tribos caçadoras coletoras”? O Clastress? Bem, eu releria, porque ele analisa de outra forma, ele analisa a vida dos caras sem colocá-los no plano do primitivo, não usa isso, ele não cai nessa, porque usar primitivo é torná-los menos que civilizados, ele considera-os sociedade, portanto, civilização. E mesmo que eu esteja equivocado, pois escrevo de memória, e ele tenha usado o termo primitivo, ele escreveu isso em 1974, não usaria hoje, a antropologia, inclusive por causa dele e como ele aborda as sociedades, tem outra leitura das etnias e de suas relações com o poder e com a organização social.
As etnias não ocidentais e ditas anteriormente primitivas não tem estado? Ok, mas não são caçadoras/coletoras, tem agricultura, organizam-se de forma complexa em sociedade, não são pré-históricos para serem chamados de primitivos e nem colocados na segunda divisão da hierarquia de sociedades. Reduzir a caçadores/coletores sociedades em um mundo globalizado, ou mesmo sociedades antes isoladas, como os Yanomami, é reduzir a sociedade dos caras ao que elas aparentam ser. Há na classificação das civilizações em termos do que aparentam ser (Sociedades agrícolas, caçadores/coletores) uma profunda ignorância etnocêntrica.
E ao ignorar a globalização e o estado da arte do capital na ocupação do espaço mundo em todos os recantos, e insistir que há ainda caçadores/coletores nos parâmetros do XIX, rola uma baita brecha de falha analítica ai, dado que se considera que sociedades e etnias não ocidentais não reagem à sociedade ocidental e sua cultura se transforma com isso. Além disso, há uma lógica que trabalha com a suposição de modos de vida pré-históricos comparados com modos de vida atuais e se constrói toda uma vertente de teoria em cima disso.
Quem caça e coleta tem agricultura e pode ou não se organizar no que chamamos de estado, mas mesmo que se organizem no que chamamos de estado eles tem uma relação com esse “estado” diferente do que temos, o entendem de outra forma. Praticam o comunismo “primitivo”, porra para de usar primitivo, please. Eles praticam a organização deles, não é comunismo, não é anarquia, não é bolo de abóbora.
As organizações sociais de outras etnias obedecem paradigmas seus que precisam ser entendidos a partir deles e não a partir do que entendemos deles. Quando o Zerzan insiste em classificá-los como primitivos, dane-se se para elogiar, ecoam a hierarquização de uma antropologia caduca, que já mudou cem vezes e agora trabalha com a perspectiva dos caras.
Ah, eles caçam e coletam? Bacana, por quê? A maioria conhece a agricultura, mas opta por caçar e coletar também, por quê? Sabe? Bem, pensa na relação deles com a terra, com os animais, com as plantas, pensa nisso antes de classificá-los como caçadores/coletores, e passa a classificá-los como uma sociedade X ou Y que tem nome, identidade, cultura e organização sociais próprias que podem até se assemelhar com o que achamos que é um comunismo da vida, mas não é, é delas, é própria, tem a cara deles e precisa ser respeitado como tal.
É a mesma coisa a ideia de entender que o primitivismo é melhor. O problema começa pelo defender um primitivismo e ignorar o que os “primitivos” são, escrevem, leem, pensam, produzem, falam de si, a partir de sua visão.
É como louvar um “primitivo” que nenhum “primitivo” sonha em ser.
Zerzan e outros já se preocuparam em entender o limite do combate dos “primitivos” à civilização e à tecnologia? Não. Não dialogou com os Uaimiris-atroaris, com os Terena, com os Guarani-kaiowá, Sabe por quê? Porque a ideia da crítica à civilização e à tecnologia, assumidamente ludista, é uma ideia ocidental, tão civilizada quanto a tecnologia e é simplória, passa pela negação absoluta sem construir a superação do estado. Nega-se, portanto, e se diz “quebremos as máquinas, resolvemos o problema”. Resolvemos? A coisa é um pouco mais complicada. Até porque as civilizações não ocidentais não estão ai ignorando o planeta e sabem o ganho tecnológico, sabem dialogar com a tecnologia sem do nada passar a considerar a terra um elemento não vivo e feito para produção sem considerar a finitude de recursos, etc.
Por quê em vez de louvar um primitivismo mitificado a gente não começa a dialogar com outras civilizações e em conjunto rever os males da civilização ocidental e transformando tudo em conjunto mudar o mundo pra melhor? Porque não sei se é de bom tom a gente abandonar as ideias feministas presentes na civilização ocidental para substituí-las por uma visão altamente patriarcal de algumas etnias tidas como “primitivas”, sabe? Acho furada.
Quem tiver algum contato com o movimento indígena brasileiro sabe que as mulheres que ali militam combatem além do preconceito que tem da sociedade nacional por serem índias e mulheres, lutam contra as próprias etnias das quais fazem parte contra o machismo presente entre indígenas. E é só conversar com elas para sabermos que esse machismo não veio de marte e nem é culpa do capitalismo ou do ocidente. Mulheres só vieram a participar do Aty guasu (Uma espécie de estado-maior da etnia Guarani-Kaiowá) recentemente.
Então dá pra gente parar de operar no plano metafísico e operar no plano concreto?
Sim, sou extremamente crítico à civilização, mas não acho que o melhor caminho para essa crítica seja o de rotular etnias diferentes e organizações sociais diferentes como um mito de pureza organizacional “primitiva” para efetuar uma crítica à sociedade como a entendemos.
Sob pena de lermos críticas à agricultura como o veneno que destruiu o mundo e lermos que tudo o que é avanço tecnológico (Devo concluir que a roda esteja entre eles) é a causa. Acabamos por jogar séculos de estudo antropológico e histórico na bacia das almas, inclusive as ideias de libertação. É um fetichismo da ferramenta com sinal invertido.
O problema é a agricultura ou a agricultura monocultora? O problema é a agricultura ou a propriedade de terra? O problema é a tecnologia ou o fetichismo da ferramenta e da mercadoria? O problema é toda a civilização ocidental ou o advento do estado-nação e a lógica capitalista? Sem refinar a crítica e nos apoiarmos em interpretações distorcidas e bombásticas da antropologia, sustentando tudo isso numa taxionomia anacrônica e vetusta.
Se produzia agricultura na África antes dos Europeus introduzirem a propriedade de terra e a ideia funcionava, viu? Produção de bananas na beira das estradas, terras sendo usadas por um tempo e depois desocupadas, com a terra jamais vista como propriedade de uma pessoa ou família. Idem na América pré-colombiana.
Li que para anarco primitivistas as movimentações em torno do combate às mudanças climáticas são “reformistas”. Li também que o combate à energia nuclear, etc são reformismo, porque não basta lutar contra isso e temos de refundar o mundo sob a ótica primitivista.
Bem, lamento, lamento porque essa lógica ignora toda a redução de danos do combate diário e me parecem uma rima ruim da ideia da anarquia como estilo de vida. Porque enquanto se prega aos quatro ventos que precisamos mudar tudo e fazer de novo o mundão continua vivendo, seguindo, depredando. E não podemos nos tornar radicais sedentários que publicam no youtube belíssimas críticas à civilização e à tecnologia pregando um ludismo que não quebra a própria Câmera e o próprio notebook enquanto gera um elogio ao um primitivismo de almanaque.
É preciso agir agora para além do simbólico.
Por isso sem organizar coletivos que atuem da Permacultura à educação ambiental e interfira hoje na busca da construção de um processo desierarquizado de relação entre homem e natureza, sem ficar esperando o amanhã ou uma grande revolução ludista que rima com a escatologia revolucionária da igreja de São Lênin, não chegaremos a nada, nos tornaremos omissos diante das tarefas imediatas de combate cotidiano às mudanças climáticas, ao agronegócio, ao genocídio indígena e quilombola que rima com os dois.
E é importante que saibamos de que primitivo estamos falando, de que crítica à civilização estamos fazendo, para que evitemos que um dia um índio tenha de nos revelar algo que nos surpreenderá, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio.
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