O Circulus em Universalidade – Joseph Déjacque
O circulus na universalidade é a destruição de todas as religiões, de todas as arbitrariedades, sejam elisias ou tartáricas, celestiais ou infernais. O movimento no infinito é um progresso infinito. Sendo assim, o mundo já não pode ser uma dualidade, mente e matéria, corpo e alma, o que quer dizer mutável e imutável, o que implica contradição – movimento excluindo imobilidade e vice-versa – mas deve ser, absolutamente ao contrário, uma unidade infinita de substância sempre mutável e sempre móvel, que implica em perfectibilidade. É pelo movimento eterno e infinito que a substância infinita e eterna é constante e universalmente transformada. É por uma fermentação de todos os instantes; é passando pelo crivo filtrante das metamorfoses sucessivas, pela emancipação progressiva das espécies, do mineral ao vegetal, do vegetal ao animal e do instinto à inteligência; é por uma rotação ascendente e contínua que se eleva gradativa e constantemente da quase inércia do sólido à sutil agilidade do fluido, e que, da vaporização à vaporização, aproxima-se constantemente de afinidades cada vez mais puras, sempre em uma obra de purificação, no grande cadinho do laboratório universal dos mundos. Assim, o movimento não está separado da substância; é idêntico a ele. Não há substância sem movimento, assim como não há movimento sem substância. O que chamamos de matéria é mente ou espírito bruto; o que se chama mente ou espírito é matéria trabalhada.
Assim como o ser humano, síntese de todos os seres terrestres, essência de todos os reinos inferiores, assim como o ser universal, enciclopédia de todos os seres atômicos e siderais, esfera infinita de todas as esferas finitas – o ser universal, como o humano ser, é perfectível. Nunca foi, não é e nunca será perfeito. A perfectibilidade é a negação da perfeição. Limitar o infinito é impossível, pois ele não seria mais infinito. Tanto quanto o pensamento pode penetrar, ele não pode descobrir seus próprios limites. É uma esfera de extensão que desafia todos os cálculos, onde as gerações dos universos e dos multiversos siderais gravitam de evolução em evolução sem nunca poderem chegar ao fim da viagem, às fronteiras cada vez mais remotas do desconhecido. O infinito absoluto no tempo e no espaço é movimento eterno, progresso eterno. Ponha um limite a esse infinito sem limites – um Deus, qualquer paraíso – e imediatamente limita o movimento, limita o progresso. É como colocá-lo em uma corrente, como o pêndulo de um relógio, e dizer a ele: “Quando você estiver no fim do seu balanço, pare! Você não deve ir mais longe”. É colocar o finito no lugar do infinito. Nós vamos! Não percebemos que a perfeição é sempre relativa, que a perfeição absoluta é a imobilidade e que, consequentemente, a perfeição imobilizada é algo absurdo e impossível? Apenas os cérebros de idiotas poderiam sonhar com isso. Não existe e não pode haver absoluto mas perfectibilidade no infinito universal. Quanto mais um ser é aperfeiçoado, mais aspira a se aperfeiçoar ainda mais. Será que a natureza, que nos deu infinitas aspirações, mentiu para nós, prometendo mais do que poderia dar? Onde ela já foi vista mentindo? É preciso ser cristão e civilizado, ou seja, cretino e eunuco, para imaginar como lugar de deleite um paraíso no qual o velho Jeová está entronizado. Alguém poderia imaginar algo mais estúpido e chato? Poder-se-ia imaginar estes bem-aventurados, estes santos enclausurados nas nuvens como num convento, cujo prazer consiste em rezar os seus terços e ruminar, como brutos, em louvores ao reverendo pai Deus, aquele superior imutável, aquele papa dos papas, aquele rei dos reis, tendo a mãe abadessa Virgem Maria à sua esquerda, e à sua direita o menino Jesus, o herdeiro aparente, um grande imbecil que carrega, com ar de seminarista, seu rolo de espinhos, e que, – na representação do mistério da tão sacrossanta Trindade, – preenche, com sua mãe imaculada embalando em seu colo o pavão Espírito Santo, que espalha sua cauda, – o papel de dois ladrões na cruz, pregado em cada lado do maior dos criminosos, o criador supremo e divino de todas as opressões e de todas as servidões, de todos os crimes e de todas as abjeções, do Verbo e da encarnação do mal! Nos conventos terrenos, pelo menos, homens e mulheres ainda podem consolar-se por sua imperfeição, por suas torturas mortais pensando em uma perfeição futura, em outra vida imortal, na bem-aventurança celestial. Mas no céu toda aspiração mais elevada é-lhes proibida: não estão eles no apogeu do seu ser? O magistrado altíssimo e todo-poderoso, aquele que julga sem apelação e em última instância os vivos e os mortos, aplicou-lhes o máximo de bem-aventurança. De agora em diante, eles vestiram a batina dos eleitos; arrastam, no paraíso, na ociosidade forçada, a bola e a corrente de seus dias; e eles estão condenados para sempre! Não há apelo por misericórdia possível; nenhuma esperança de mudança, nenhum vislumbre de movimento futuro pode alcançá-los. A eclosão do progresso está selada para sempre acima de suas cabeças; e, como o recruta vitalício em seu casco, escravos de galés imortais, eles estão para sempre presos à corrente dos séculos na eterna estada celestial!
Toda a diversão dessas pobres almas consiste em entoar hinos e prostrar-se diante do mestre soberano, aquele velho cruel que, nos tempos de Moisés, usava manto azul e barba encaracolada, e que pela moda atual deve usar hoje casaco preto e gola dura, costeletas de carneiro ou cavanhaque imperial, saliva no lugar do coração e arco-íris de cetim ao redor do pescoço. A imperatriz Maria e suas divinas damas de companhia certamente têm crinolinas sob as anáguas e, com certeza, os santos, na farda da corte, são engomados, desejosos, com pomada e enrolados nem mais nem menos que os diplomatas. Suas abençoadas avós, sem dúvida, tocam ao piano toda a santa eternidade, e suas benditas excelências giram a mão do órgão-do-paraíso … Que diversão eles devem ter! Isso deve ser divertido! É verdade que não sou rico, mas certamente ainda daria uns poucos sous para ver tal espetáculo – para assistir por um momento, você entende, para não ficar lá; e apenas com a condição de pagar na saída, se estivesse contente e satisfeito. Mas, pensando bem, acho difícil acreditar que o que se passa lá dentro valha mesmo uma soma insignificante na porta. Não está dito: “Felizes os pobres de espírito, o reino dos céus pertence a eles”. Essa propriedade nunca vai me encantar. Definitivamente, às vezes os santos Evangelhos exibem uma ingenuidade que é … divertida: conceda então ouvidos de burro a todos os laureados da fé! Esses primeiros padres da Igreja devem ter sido travessos: é melhor confessar logo de cara que o paraíso não vale os quatro grilhões de um … cristão. E admitir que as mulheres ficaram com as promessas desses conquistadores da superstição, que sorriram de todas essas seduções cretinas, que deram seu amor por este paraíso anti e ultra-humano! Admitir que os homens foram enganados como as mulheres, que acreditaram em todos esses ignóbeis – tolice, que eles os adoraram! – Pobre natureza humana! – Contudo, pode-se admitir que seria difícil inventar algo mais prejudicial à felicidade do homem que não tem absolutamente o prazer de ser pobre de espírito. Na verdade, eu me consideraria mais feliz por ser um condenado na prisão do que um dos escolhidos no paraíso. Na prisão, eu ainda viveria de minhas esperanças. Cada resultado do progresso não estaria completamente fechado para mim, e meu pensamento, como minha força física, poderia tentar uma fuga das galés. E então a eternidade da vida de um homem é menos longa do que a perpetuidade da vida de um santo. O movimento universal, ao me transformar da vida à morte, finalmente me livrará da minha tortura. Eu renascerei livre. Enquanto com a prisão celestial é imobilidade sem fim, joelhos dobrados, mãos cruzadas, cabeça baixa, testa sem esperança, o que quer dizer uma tortura sem precedentes, com corpo e alma, músculos e fibras postos à prova sob o olhar inquisitorial de Deus …
Quando penso que, lucrando com a deterioração de minhas faculdades, provocada pela idade ou doença, um padre poderia vir na hora da minha morte e me dar, de uma forma ou de outra, a absolvição de meus pecados, de minhas heresias; que me pudesse entregar, um sujeito suspeito ou condenado por lèse-divinité, uma lettre de cachet[1] para o céu, e manda-me apodrecer naquela divina Bastilha sem um raio de esperança de jamais sair dela, brrrrrrr! … isso me dá arrepios. Felizmente, os paraísos esperados são como castelos na Espanha: eles só existem em imaginações atingidas pela alienação mental; ou, como os castelos de cartas, o mínimo fôlego da razão é suficiente para derrubá-los. No entanto, declaro aqui: No dia em que a morte pesar sobre mim, que aqueles que podem me cercar então, se forem meus amigos, se respeitarem os desejos de minha razão, e não permitirem que minha agonia seja manchada por um padre e meu cadáver manchado pela igreja. Livre pensador, quero morrer como vivi, em rebelião. Vivo e ereto, protesto veementemente e antecipadamente contra cada profanação de meus restos mortais. Partícula da humanidade, quero servir ainda depois da minha morte à educação e à vida da humanidade; é por isso que deixo meu corpo para o médico que quer fazer uma autópsia dele e estudar os órgãos de um homem que fez tudo o que pôde para ser digno desse nome; e que lhe peço, se for possível, enterrar os restos, como fertilizante em um campo semeado.
Mas voltemos ao nosso assunto, o circulus na universalidade. A esfericidade ilimitada do infinito e seu movimento absoluto de rotação e gravitação, – sua perfectibilidade, em suma, é demonstrada por tudo o que atinge nossa visão e nosso entendimento. Tudo gira em nós e ao nosso redor, mas nunca precisamente no mesmo círculo. Cada rotação tende a se elevar, a se aproximar de um ideal mais puro, de uma utopia remota que um dia se realizará para dar lugar a outra utopia, e assim progressivamente de ideal a ideal e de realização a realização.
Na terra, todos os seres, nossos subalternos, em qualquer grau que sejam colocados na hierarquia de reinos ou de espécies, minerais, vegetais ou animais, tendem ao ideal humano. Tal como acontece com o infinitamente pequeno, também com o infinitamente grande – nosso globo e a multidão de globos que o seguem de longe em um único giro, tendem igualmente, qualquer que seja sua superioridade relativa ou inferioridade, para seu ideal luminoso, o sol. E todos se aproximam a cada dia, ainda que insensivelmente: o homem como o sol tende por sua vez para algumas esferas mais utópicas, por uma gradação ascendente e contínua; e sempre assim até o fim dos fins, ou melhor, sem fim nem termo. – O mineral gira imperceptivelmente sobre si mesmo e atrai para si tudo o que pode apropriar-se das ordens inferiores; ela cresce e se estende, e então confia a alguns agentes condutores alguns fragmentos de sua exuberância e alimenta a planta. – Por sua vez, a planta cresce, balançando com a brisa e desabrochando com a luz. Os insetos coletam pólen dela; oferece-lhes o seu mel e as suas fibras, tudo o que roubou das entranhas da terra e que fez nascer à luz do dia através dos filtros dos seus tecidos. Os insetos e vermes tornam-se então presas dos pássaros; a própria planta é alimento para animais de grande porte. O mineral já se transformou em carne e osso, e a seiva se tornou sangue; o instinto é mais rápido e o movimento mais pronunciado. A gravitação continua. O homem assimila o vegetal e o animal, a grama e os grãos, o mel e a fruta, a carne e o sangue, o gás e a seiva, as brisas e os raios. Estrela terrestre, ele bombeia por todos os poros as emanações de seus inferiores; ele os levanta gota a gota, pouco a pouco, ao seu nível e volta a eles para amassar de novo o que ainda é muito grosso para ele encarnar em si mesmo. Da mesma forma, ele exala pelo pensamento os aromas puros demais para serem retidos em seu cálice e os espalha pela humanidade. A humanidade, depois de incorporá-los, integra tudo o que pode se identificar com seu grau de perfeição, e retorna para amassar às espécies instintivas, às ordens inferiores, o que é muito grosso para ela nesses fluidos, e exala o que é muito sutil para as humanidades superiores das esferas externas.
Assim é com os planetas girando em torno do sol, e com o sol girando por sua vez com todos os seus satélites em torno de outro centro mais elevado, a estrela daquela estrela.
Ora, se tudo gira primeiro em espiral, desde a sua necessidade de preservação, e se, girando sobre si mesmo, tudo se estende por baixo de si, pela sua necessidade de alimentação, e se eleva acima de si mesmo, pela sua necessidade de expressão; se a vida é uma revolução perpétua, um círculo sempre em movimento, cada movimento do qual modifica sua natureza; se todo movimento é um progresso, e se quanto mais rápido é o movimento de rotação e gravitação, mais ele acelera o progresso em nós; homens e mulheres, a quem a analogia demonstra todas essas coisas, podemos fazer menos do que nos curvar às evidências? Não podemos desejar ser revolucionários e, sendo revolucionários, não querer ser ainda mais revolucionários? Para o ser humano, viver a vida do mineral, vegetal ou animal, viver a vida das pedras ou dos brutos, não é viver; e viver a vida dos civilizados é viver a vida de pedras e brutos. Humanos, não nos endureçamos diante de nosso destino, mas entreguemo-nos com paixão aos seus ensinamentos; avancemos com ousadia para a descoberta do desconhecido; buscar o progresso para realizar com ele a evolução humanitária no grande círculo dos seres e sociedades perfectíveis; vamos nos iniciar sem medo nos mistérios da revolução eterna e universal no infinito. O infinito sozinho é grande, e a revolução só tem malícia para aqueles que permaneceriam fora de seu círculo. Vivamos de movimento para movimento, de progresso e para progresso, independentemente de a sepultura estar perto e o berço longe. O que é a morte para nós, se a morte ainda é movimento e se o movimento ainda é progresso? Se essa morte é apenas uma regeneração, a dissolução de nossa unidade em desintegração, um organismo incapaz de mover-se no momento perfeitamente em sua contínua desagregação e, além disso, a reagregação da pluralidade de nosso ser em organismos mais jovens e mais perfectíveis? Se essa morte, enfim, é apenas a passagem de nosso estado de senilidade para o estado embrionário, o molde, a matriz de uma vida mais turbulenta, o cadinho de uma existência mais pura, uma transmutação de nosso latão em ouro e uma transfiguração desse ouro em mil moedas, animadas e diversas, e todas estampadas com a efígie do Progresso? A morte só é assustadora para quem se aquece em sua sujeira e fica paralisado em sua casca de porco. Pois, na hora da decomposição de seus órgãos, ele irá aderir por seu peso e vileza, como aderiu durante sua vida, a tudo que é lama e pedra, fedor e torpor. Mas o homem que, em vez de engordar e afundar de bom grado em sua ignomínia, queimou sua gordura para produzir luz; o homem que agiu com sua voz e força, com coração e inteligência que será revigorado pelo trabalho e amor, pelo movimento – aquele, na hora em que o último de seus dias se esgota; quando ele não tem mais óleo em sua lâmpada, nem elasticidade em suas obras; quando a maior parte de sua substância, há muito volatilizada, viaja já com os fluidos; aquele, eu lhe digo, renascerá ele mesmo, em condições tornadas mais perfectíveis na medida em que ele trabalhou em sua própria perfectibilização. Além disso, a morte não tem um lugar em todos os instantes da vida dos seres? O corpo de um homem pode preservar por um único momento as mesmas moléculas? Todo contato não o modifica constantemente? Não consegue respirar, beber, comer, digerir, pensar, sentir? Cada modificação é ao mesmo tempo uma nova morte e uma nova vida, mais dolorosa e mais inferior na medida em que a alimentação e a digestão física e moral foram mais preguiçosas ou mais grosseiras; mais fáceis e superiores na medida em que foram mais ativas ou refinadas.
II
Assim como o homem digere o vegetal e o animal, assimila seu suco ou essência e descarrega sua pele e detritos excrementais como o esterco que dará à luz seres inferiores; da mesma forma, o homem digere o hominal e as gerações de hominals, seu suco ou essência e descarrega sua pele e detritos excrementais como o esterco no qual chafurdará e pastará as sociedades bestiais e vegetativas.
Como as obras de um moinho, o organismo individual do homem e o organismo da humanidade moem em suas engrenagens o fruto do bem e do mal, e separam o bom do mau, o farelo da farinha. O farelo é jogado no cocho para o gado, a farinha é colhida pelo homem e serve para o seu sustento. O bem é destinado às classes mais altas de seres, o mal às mais baixas. Aquele se transforma em pão branco ou em bolo e é posto à mesa em bandejas de porcelana ou prata na festa das inteligências; a outra permanece crua ou se transforma em restos, e cai na manjedoura para o rebanho da fazenda ou feras de carga. O grão bom ou ruim, e cada grão daquele grão, é tratado de acordo com seu valor, punido ou recompensado de acordo com seu mérito. Cada um carrega dentro de si seu castigo e sua recompensa, o homem tanto quanto o grão; sua pureza ou impureza faz seu paraíso ou inferno no presente, seu inferno ou céu no futuro.
Todo trabalho é um instrumento de progresso, toda ociosidade é lixo para decrepitude. O trabalho é a lei universal; é o órgão de purificação de todos os seres. Ninguém pode tirá-lo sem cometer suicídio, pois só se pode nascer e crescer, se formar e se desenvolver pelo trabalho de parto. É pelo trabalho que o grão brota no sulco, levanta o pedúnculo e é coroado com um rico fruto; é também pelo trabalho que o feto humano se fecha e se envolve no ventre da mãe e que, obedecendo a uma atração imperiosa, surge escapando do órgão da geração; é pelo trabalho que a criança se põe de pé, cresce e, ao se tornar homem, é coroada com o duplo fruto de suas faculdades manuais e intelectuais; é também pelo trabalho que amadurece física e moralmente antes de cair sob a foice do Tempo, esse ceifeiro universal e eterno, para recomeçar, na vida eterna e universal, uma nova obra e novos destinos. – O ser, seja o que for, é chamado a trabalhar na medida em que seus atrativos sejam elevados; e suas sensações são voluptuosas na medida em que são purificadas pelo trabalho.
Felizes aqueles cujas faculdades produtivas são superexcitadas pelo amor ao bom e ao belo: serão fecundos no bem e na beleza; nenhum trabalho é infrutífero. Infelizes são aqueles cujas faculdades produtivas dormem envoltas na apatia do horrível e do mal: não conhecerão as alegrias que as paixões trabalhadoras e generosas proporcionam. Toda inércia é infértil; todo narcisismo, toda adoração exclusiva de si mesmo está condenada à esterilidade. A felicidade é uma fruta que só se apanha nos cumes altos e que só tem um sabor delicioso depois de cultivada. Para o preguiçoso, o inerte, como para a raposa impotente, é um fruto muito verde: amadurece apenas para os ágeis, os trabalhadores. Não é sequestrando-o em seu ser, isolando seu seio dos seios de seus irmãos para que se possa obtê-lo; não pertence ao fratricida, mas ao fraterno. Só podem colher os que não temem colocar os braços, o coração e a cabeça para o alto e fazer a comunhão com os esforços individuais.
O homem e a humanidade trazem consigo a semente do bem-estar individual e social; cabe ao trabalho individual e social cultivá-lo, se quiserem saborear seus frutos.
É por ter provado o fruto da árvore da ciência que, segundo as mitologias judaica e cristã, perdemos o paraíso terrestre. Ah! Se, em vez de só provar, a Humanidade tivesse tentado engolir-se dele, não seria difícil recuperar esse Éden, tão estreito e tão pouco lamentável. Então, poderíamos tê-lo, prodigiosamente, ilimitado e repleto de felicidades com um apelo muito diferente daqueles dos tempos primitivos. Não digo que com a ajuda da ciência poderíamos, como os alegados deuses, fazer algo do nada, mas poderíamos regenerar o que existe, fazer do mundo um mundo melhor, de nossas sociedades no estado civilizado uma sociedade no estado harmônico, e entrar quase sem transição da vida das idades presentes para a vida das idades futuras.
As religiões, por mais absurdas que sejam, representam, no entanto, a necessidade de um ideal inato no homem. Todas as fábulas do passado e do presente representam esperanças futuras, a sensação de imortalidade nos mortais. A ignorância e a superstição transformaram essas aspirações em monstros informes; cabe à ciência, a razão livre de seus panos, dar-lhes formas humanitárias. O homem e a humanidade, por mais perfeitos que sejam um dia, ainda assim experimentarão desejos que nunca encontrarão satisfação em nenhum momento presente. O futuro será sempre um farol para o qual tenderão todos os seus esforços, objeto de seus constantes anseios; o chamado do progresso sempre ressoará em seus ouvidos. A percepção sempre será mais elevada e sempre levará mais longe do que a realização. O homem percebe claramente que nem tudo está fechado para sempre sob a tampa do caixão. A ideia de progresso protesta não apenas contra toda destruição, mas também contra toda degeneração; e não apenas contra toda degeneração, mas contra tudo o que não é regeneração e perfectibilização. A ignorância e a superstição supõem a imortalidade da alma e a ressurreição celestial. Acredito ter demonstrado que não há alma distinta do corpo; e haveria dualidade, o que não é admissível, se aquela alma ainda obedecesse às mesmas leis da decomposição do corpo. A alma absoluta e o paraíso absoluto seriam a negação do progresso; e não podemos negar mais o progresso do que o movimento. Deus, tanto no sentido religioso como no filosófico, não pode mais existir em relação a nós, como nós mesmos não podemos existir como Deus em relação às miríades de átomos dos quais nosso corpo é o Grande-Tudo. Não é o corpo humano, em sua pequena universalidade, que cria e dirige essas miríades de átomos de que é composto; são esses átomos, em vez disso, que o criam e o dirigem, movendo-se de acordo com suas atrações passionais. Longe de ser o seu Deus, o homem quase não é senão o seu templo: é a colmeia ou o formigueiro animado por estas inumeráveis multidões do imperceptível. O ser universal não seria, mais do que o ser humano, o criador nem o diretor das colossais multidões de mundos que o constituem; são esses mundos, em vez disso, que o criam e dirigem. Longe de ser seu criador, seu produtor – seu Deus, como dizem os metafísicos – o ser universal dificilmente é outra coisa que a oficina ou, no máximo, o produto da infinidade dos seres. Como então seria ele o motor de cada um, se ele é apenas a máquina da qual cada um é o motor? Deus e o absoluto são negados por tudo na natureza que tem vida. O progresso que é movimento e o movimento que é progresso conferem-lhe um certificado de inexistência, caracterizam-no como impostor. Se o absoluto pudesse existir acima de nós, seríamos o absoluto para o que está abaixo de nós, e movimento e progresso não existiriam. A vida seria nada, e o nada não pode ser concebido. Tudo o que sabemos é que a vida existe: assim existe o movimento, existe o progresso e, portanto, o absoluto não existe. Tudo o que podemos concluir é que o circulus existe na universalidade como existe na individualidade. Como toda individualidade, a universalidade, por mais infinita que seja, é ela mesma apenas uma rotação e uma gravitação esférica que, afastando-se cada vez mais da escuridão e do caos e aproximando-se cada vez mais da luz e da harmonia, se aperfeiçoa trabalhando incessantemente, por um mecanismo ou organismo que é cada vez mais retificado … Mas tudo isso contradiz absolutamente a ideia de um Deus do qual tudo emana e para o qual tudo retorna, a ideia de que tudo foi criado, por Deus, do nada, para ser aniquilado no seio do mesmo Deus – que é digamos, algo partindo do nada para não levar ao nada, indo além do absurdo para cair no absurdo. Deus, fonte de todas as coisas, ponto central de onde tudo segue e para o qual tudo retorna, é uma dessas lógicas contraditórias que se pode dar aos filhos dos homens e às humanidades na infância, porque sua inteligência ainda adormecida não pode ainda responder. Mas é absolutamente absurdo. Um rio não pode fluir de volta para sua fonte; a fonte não é mais eterna do que o rio. Ambos existem apenas na condição de movimento, ou seja, de progresso, de nascimento e morte, de geração e regeneração. Como o rio, a fonte tem uma causa. Não é tudo, este pequeno ponto central de onde jorra a água viva que produz o riacho. A abertura é apenas um efeito, não uma causa; e, voltando do efeito para a causa, descobriríamos que a causa ainda é apenas o efeito de outra causa, e assim por diante. Deus não explica nada. É uma palavra a riscar do vocabulário dos homens, pois serve para contornar a dificuldade sem resolvê-la. Deus é apenas um manequim, a couraça (ou frente da camisa) da ignorância, uma vara nas rodas do progresso, um farejador na luz, um … trapo na lanterna! É hora de limpar a linguagem universal disso. Excremento do cretinismo humano, de agora em diante pertence à Academia Domange e aos consortes: deixe-o reinar nos poços do Villette, e deixe-o, reduzido a pó e lançado aos quatro ventos, servir finalmente como fertilizante para o movimento, para a criação eterna, universal e perfectível, para o desenvolvimento ilimitado do infinito.
Deus! … na verdade é possível que dois homens concordem no significado que dão a esta palavra? Não aceito que para as necessidades da dialética seja necessário recorrer a ela. Deixe um filósofo empregá-lo em seus escritos, e, se for um católico que os lê, ele gostaria apenas de ver – quaisquer que sejam as advertências que o autor deu – o Deus de sua própria religião. Se ele é um calvinista, um luterano, um israelita, um muçulmano, um hindu, um filósofo crente ou um crente filosófico, cada um não desejaria e não seria capaz de ver nada além do Deus de sua própria imaginação. Finalmente, essas três cartas cabalísticas representarão tantos Deuses diferentes quantos forem os leitores ou ouvintes. Não vejo que necessidade a dialética poderia ter dela, e acredito que seria melhor e mais sabiamente prescindir dela. Coisas novas requerem novas palavras. Sei que há muitas outras expressões que usamos, tanto eu como qualquer outra pessoa, e que não têm o mesmo significado para todos: é um mal que é preciso tentar remediar, caso contrário discutiríamos muito tempo sem entendendo um ao outro. Deus sendo a causa primeira de todas as falsidades sociais, a fonte de todos os erros humanos, a mentira capital, Deus não pode mais ser empregado na discussão, exceto como um termo abusivo, como um respingo cuspido de nossos lábios ou de nossa pena. Não basta ser ateu, é preciso ser teocídio. Não basta negar o Absoluto; é necessário afirmar o Progresso e afirmá-lo em todos e em todas as partes.
Defeitos de lógica, é o que engana os maiores pensadores, o que perturba a massa das inteligências. É porque uma pessoa não está de acordo consigo mesma que frequentemente não consegue chegar a um acordo com os outros. Todos nós que afirmamos o movimento no progresso infinito e consequentemente infinito, a universalidade única e solidária, afirmamos igualmente o movimento em nós e consequentemente o progresso, a individualidade única e solidária. Vamos negar a dualidade no finito como a negamos no infinito. Rejeitemos essa hipótese absurda da imortalidade da alma, ou seja, do absoluto no finito, quando temos a prova pelo corpo de que tudo o que é finito é perecível, ou seja, divisível e multiplicável, ou seja, progressivamente perfectível. A matéria não é uma coisa e o espírito outra coisa, mas uma mesma e única coisa que o movimento se diversifica constantemente. O espiritual é apenas o resultado do corpóreo; não é uma questão de espiritualidade, mas de espirituosidade. A alma, ou melhor, o pensamento está para o homem assim como o álcool está para o vinho. Quando se fala do espírito do vinho, certamente é de uma coisa inteiramente material. Por que deveria ser diferente quando se trata do espírito do homem! Você ainda acredita então que a terra é plana, que os céus são uma cúpula para servir de domo e que o sol e as estrelas são velas acesas pelo Deus criador em homenagem a Adão e Eva e seus descendentes? E se você não acredita mais nessas supostas revelações, nesses charlatães ou nessa aberração da fé, e se você acredita no que a ciência e o gênio da observação te ensina, em virtude de que razão você gostaria que o espírito fosse distinto de matéria? E, mesmo sendo distinto, que um seja o movimento e o outro a inércia, e que justamente aquele ao qual você atribui o movimento nunca mudou na sua individualidade? Paradoxo inexplicável! Bem, a observação diz a você, pelo meu testemunho, que tudo o que foi vapor ou pó e está agrupado e assumiu forma acabada, definitiva, sairá grão a grão, gota a gota, molécula a molécula e se espalhará no indefinido para assumir, não outra forma, mas uma multiplicidade de outras formas, e deixará de novo essas múltiplas formas para se dividir novamente e multiplicar e progredir eternamente no infinito. Para se convencer disso, não há necessidade de ter estudado grego ou latim, basta examinar a analogia, inferir e deduzir.
Eu estabeleci que tudo o que é inferior ao homem tende a gravitar em torno dele. O homem é o resumo da criação terrestre. A Terra é um ser animado como todos os seres e dotado de vários órgãos próprios à vida. A humanidade é o seu cérebro, ou melhor, é aquela parte dela que, em relação ao cérebro humano, se chamou a matéria cinzenta, isto é, a parte eminentemente inteligente, para o animal e o vegetal, e mesmo o mineral, – em certa proporção, – também vivem sob o crânio terrestre e formam o conjunto de seu cérebro. Sozinho, de todos os átomos que vivem obscuramente nas entranhas do corpo planetário ou repousam, vegetam, rastejam, andam ou voam pela luz entre o solo e a atmosfera – o homem é uma espécie perfectível. Ele possui algumas faculdades desconhecidas para os outros seres ou que são pouco sensíveis entre eles, a da memória, por exemplo, ou do cálculo; o da emissão e transmissão da ideia. Ao contrário do mineral, vegetal e animal, as gerações hominais se sucedem e não se parecem; eles sempre progridem e não conhecem o limite de sua perfectibilidade. Eh! bem, o que existe para a terra obviamente existe para o homem. O homem é outro globo, um pequeno mundo que também tem em si sua raça privilegiada, sua humanidade em miniatura, ideal de todas as espécies atômicas que o povoam e formam seu corpo. Essa humanidade é chamada de cérebro. É em sua direção que gravitam todos os reinos ou todas as espécies moleculares do corpo humano. Essas moléculas – as mais sujas e também o que se poderia chamar de mais inertes – todas tendem a se elevar de seus leitos e de suas naturezas inferiores para aquele tipo de superioridade que vive sob o crânio humano. E, como a humanidade, a parte inteligente do cérebro do corpo terrestre é perfectível, a cervellidade, ou parte inteligente do cérebro, que é a humanidade do corpo humano, também é perfectível. Enquanto fora do cérebro, as moléculas inferiores agem apenas mecanicamente, por assim dizer, e com mais inércia quanto mais baixas se situam na escala de progressão dos reinos ou espécies; no cérebro, ao contrário, ápice da criação hominal, o movimento é rápido e inteligente. O cérebro do homem, como o cérebro do planeta, também tem suas três, ou melhor, suas quatro gradações que correspondem aos quatro reinos: o mineral, o vegetal, o animal e o hominal. O cretino, por exemplo, que na raça humana é o ser mais destituído de inteligência, tem, no cérebro, em estado de desenvolvimento, apenas matéria reclinada e vegetativa, que corresponde ao mineral e vegetal, mas onde prevalece o mineral em volume sobre o vegetal. O imbecil é aquele em cujo cérebro o vegetal prevalece sobre o mineral e onde se encontra um pouco do animal, ou seja, uma matéria rastejante e um tanto instintiva. No civilizado, todos os três reinos são desenvolvidos em seu cérebro, mas o reino animal prevalece sobre os outros dois. O que corresponde ao hominal, ou seja, à matéria inteligente, ainda está em estado de infância ou de selvageria e disperso sob o crânio em meio às matas virgens do sistema vegetal, entre os blocos de rocha do sistema mineral e expostos em sua fraqueza e nudez à ferocidade do sistema animal. – É então o trabalho industrial e científico dessas gerações de átomos perfectíveis movendo-se entre nossos dois templos como entre dois polos; são suas alegrias e suas dores, sua ciência ou sua ignorância, suas lutas individuais e sociais que constituem nosso pensamento. Dependendo se esses infinitesimais estão mais ou menos no estado harmônico; se obedecem entre eles à lei natural da liberdade, à anarquia, à autonomia, ou à lei artificial da autoridade, à monarquia, à tirania; se eles estão sob o império da superstição ou estão livres dele; se suas populações estão mais ou menos entregues ao pauperismo e à aristocracia, ou ricas em igualdade e fraternidade; se esses pequenos diminutivos de homens estão mais ou menos encurralados entre as barreiras nacionais e as cercas da propriedade privada, ou circular mais ou menos facilmente de uma eminência passional, lar ou pátria, para outra, e de um continente natural para outro continente; enfim, consoante sejam mais ou menos livres ou mais ou menos escravos, e também, se nós próprios sejamos mais ou menos dignos, mais ou menos próximos da escravidão ou da liberdade. – O ser cervelain[3], como o ser humano, ingere pela dieta tudo o que está abaixo dele, descarrega dos órgãos inferiores o que é muito grosseiro, assimila o que é perfeito o suficiente para nele se encarnar e exala para fora, nas asas do pensamento humano, o que é muito sutil para permanecer cativo nele. Assim, é errado fazermos essa classificação de mente e matéria como sendo duas coisas distintas, uma móvel e imutável, a outra mutável e imóvel, uma invisível e impalpável, a outra palpável e visível. Tudo o que é móvel é mutável e tudo o que é mutável é móvel. O que é palpável e visível para o ser humano, o infinitamente grande, é invisível e impalpável para o ser humano, o infinitamente pequeno. Aquilo que é impalpável e invisível para o ser humano é visível e palpável para o ser colocado mais alto na hierarquia dos seres, o ser humano ou o ser terrestre. Para os seres infinitamente mais perfeitos do que nós, – as humanidades das esferas astrais, eu suponho, – o que consideraremos, nós mesmos, como um fluido, eles próprios considerarão como um sólido; e o que eles consideram fluido é considerado sólido pelas humanidades ainda mais elevadas em superioridade. O mais sutil, aqui, para um, é, ali, para o outro, o que se torna o mais grosseiro. Tudo depende do ponto de vista e da condição em que o ser está colocado. A última palavra do ser cervelain certamente não é o crânio, como a última palavra do ser humano certamente não é o crânio terrestre. O homem não é o absoluto de um, a humanidade não é o absoluto de outro. Sem dúvida, a cervellidade dá origem a gerações que, como as gerações humanas, produzem e transmitem ideias, e se acumulam na memória do homem de gigantescos labores. Sem dúvida, também, a humanidade acumula gerações em gerações e progresso em progresso. O superior, o bom e o melhor aumentam como resultado dos esforços de cada um. Mas os planetas, como os homens, nascem, crescem e morrem. Com a morte dos homens ou dos globos, as humanidades ou cervellidades purificadas elevam-se por qualquer caráter fluido que possuam para esferas em formação ou em expansão e de natureza mais perfectível. O progresso é eterno e infinito, depois de um passo, outro passo, depois de uma vida, outra vida, e ainda e sempre.
Qualquer ser, um homem, ou o superior ou inferior o homem, é como um saco de grãos ou de moléculas de todos os tipos, que o movimento, quer dizer a vida e a morte, se enche e se esvazia sem cessar. Esses grãos, vindos do campo de produção, retornam ao campo de produção ou, conforme seu grau de perfectibilidade, produzem centeio ou trigo. O conteúdo do saco procria uma multidão de talos, e em cada talo cada um dos grãos se subdivide e se multiplica na espiga. Nada daquilo que é pode preservar por um minuto sua plena individualidade. A vida é uma troca perpétua para o benefício de cada um. Os mais ricos em perfectibilidade são os mais pródigos, os que mais se aventuram na circulação: quanto mais o trabalhador semeia e colhe! Os mais pobres são os mais mesquinhos, aqueles que têm o olhar voltado para dentro, que se acumulam molécula sobre molécula nas cavidades do seu ser, que se fecham no íntimo e perdem, numa estúpida contemplação privada, um capital de faculdades, um tesouro de sensações esse contato externo teria feito dar frutos.
O que quero deixar bem compreendido, e o que me esforço por generalizar, correndo o risco de me repetir, é que as religiões, as moralidades artificiais ou enganosas tiveram seus dias, e que nada mais são hoje do que a imoralidade ou a irreligião; é que há uma moralidade, uma religião natural a ser inaugurada sobre os escombros das velhas superstições, e que essa moralidade ou essa religião só pode ser encontrada na ciência do homem e da humanidade, da humanidade e da universalidade; é que o homem como o universo, é um e não duplo: não matéria e espírito, nem corpo e alma (matéria ou corpo inerte, espírito ou alma imaterial), mas substância animada e passional, suscetível a milhares e milhares de metamorfoses e limitada por sua animação e sua passionalidade, por suas atrações, a um perpétuo movimento ascendente. – O que é importante notar para destruir todas as teologias seculares e com o sistema autoritário que ainda serve de base à organização das sociedades contemporâneas e adia a comunhão fraterna dos humanos, é que com o movimento o absoluto não pode existir; é que a individualidade do homem e da humanidade como a individualidade de todos os seres atômicos e siderais não pode preservar por um só instante sua personalidade absoluta, é que o movimento os revoluciona sem cessar e constantemente acrescenta algo e tira algo deles; é que todos nós, minerais, vegetais, animais, homens, estrelas, não saberíamos viver em nós mesmos e por nós mesmos; que não há vida sem movimento, e que o movimento é uma transformação infinita da coisa finita; é que vivemos apenas com a condição de participar na vida dos outros, e que a vida em nós é tanto mais frutífera quanto a semeamos fora dos campos, lotes que nos voltam em safras maduras e abundantes; e tanto mais vivaz quanto lhe damos mais elementos externos, quanto lhe ponhamos paixões em combustão em sua lareira. Enfim, é que quanto mais emitimos luz e calorias, mais gastamos inteligência e amor e mais nos elevamos com rapidez de apoteose em apoteose em regiões cada vez mais superiores, cada vez mais etéreas.
Tudo é solidário na universalidade. Tudo é composto, decomposto e recomposto de acordo com suas atrações recíprocas e progressivas, o átomo como o homem, o homem como as estrelas e as estrelas como os universos. Os universos são átomos na universalidade, como o próprio átomo é um universo em sua individualidade. O infinito existe nas duas antípodas da criação, tanto para a divisibilidade em pequena escala quanto para a multiplicidade em grande escala. A visão curta do homem, seu fraco entendimento não pode soar suas profundezas incomensuráveis. O finito não pode abarcar o infinito, só pode senti-lo. Mas o que o pensador, munido do poderoso instrumento que chamamos de analogia, pode tocar e fazer o pensamento tocar, o que ele deve proclamar com golpes de lógica em todos os lugares e em todos os jornais públicos, é que o ser individual não é consequência do ser universal, mas que o ser universal é consequência dos seres individuais; é o grupo infinitamente grande, do qual os infinitamente pequenos são os membros constitutivos. Deus, a alma, o espírito são mitos que a Humanidade que se aproxima da idade da razão deve lançar sem remorso na cesta de trapos como algumas bonecas da nossa juventude. A ciência, a partir de agora, e não mais a superstição, deve ocupar seu pensamento. Que não se esqueça que é filha do progresso e noiva do progresso. Os polichinelos, os deuses bons e os demônios, todos os Guinhol e as marionetes armadas de paus são de infantilidade indignas disso, hoje que sua minoria chega ao fim. Já é tempo, é hora de pensar na sua emancipação; que cinge sua testa com a bandeira intelectual; que finalmente se prepare para seus destinos sociais, se não quiser servir para sempre de chacota para as Humanidades de outros globos.
Para resumir, eu digo:
O movimento, ou seja, o progresso, sendo provado, o absoluto não pode existir no finito mais do que no infinito e, portanto, o absoluto não existe.
Como consequência, Deus, alma universal ou absoluta do infinito, não existe.
E como consequência posterior, a alma, o absoluto do homem, individualidade única e indivisível, forma eternamente acabada, não existe.
A matéria é tudo. O movimento é o atributo da matéria, e o progresso, o atributo do movimento.
Como a matéria e o movimento, o progresso é eterno e infinito.
O circulus na universalidade não leva à perfeição absoluta. Conduz à perfectibilidade infinita, ao progresso ilimitado, consequência do movimento eterno e universal.
Portanto, a perfeição absoluta não existe e não pode existir. Se existisse, o progresso não existiria.
A perfeição absoluta é contra todas as evidências e é um absurdo.
Movimento é, obviamente, verdade.
Nenhuma transação é possível entre esses dois termos: é necessário ou acreditar em Deus e em seus diminutivos e negar o movimento, ou afirmar o movimento e invalidar Deus.
– Deus é a negação do progresso.
– O progresso é a negação de Deus.
“lesa-divindade, uma carta com selo” (N.T.)
Pelo contexto dessa palavra, pode ser expressa como sinônimo de “genialidade” (N.T.)
Podemos também chamar de “ser genial” (N.T.)