Pelos campos por Neno Vasco

Pelos campos

No dia 16 de agosto de 1902, vinha a lume o número 24 da Revista do Norte, uma publicação de arte e literatura sediada na cidade de São Luís, no estado do Maranhão. Para esse número, Neno Vasco escreveu o poema “Pelos campos”, o único de sua lavra, até onde se sabe, publicado em uma revista literária. É Possível que a indicação do seu nome para publicar no referido periódico se deva a Mayer Garção, escritor que transitou entre o anarquismo e o republicanismo, com quem Neno Vasco tinha amizade desde quando vivia em Portugal. O poema nos revela um lirista talentoso, que assimilou bem o estilo do romantismo português tardio. Profundamente tocado por João de Deus, autor cuja obra conheceu ainda nos tempos do Liceu em Amarante, Neno Vasco destacava a natureza como o cenário dos sentimentos comunicados por seu “eu lírico”.

 É nesse cenário que o poeta encontra a sua musa,objeto máximo de seu desejo, que nunca se realiza. Curiosamente, a irrealização desse desejoerótico não deságua em censura, mas sim em sublimação. Por meio desse ato, o poeta transformao desejo que tem pela musa, em desejo que tem por tudo.Ao longo de 1902, Neno Vasco seguiu compondo suas poesias, no entanto, foramrareando a ponto de deixarem de ser escritas já no final daquele ano. Ao que tudo indica, esseabandono, nunca completo, é verdade, obedeceu às crescentes demandas de ordem militante queque ele passou a cumprir na imprensa anarquista brasileira. Seria na prosa, mais concretamentena crônica, que sua escrita encontraria um meio para traduzir o seu novo desejo: a construção deuma sociedade mais livre, igualitária, e, por que não, bela. Uma sociedade que introduzisse o “luxo comunal”, para retomar aqui a feliz expressão  forjada por Eugene Pottier no contexto da Comuna de Paris de 1871.A pesquisa e edição são de Thiago Lemos Silva. Por Neno Vasco Este caminho, que agora eu sigo, Leva-me direitinho àquela aldeia…Mas esta árvore cede-me um abrigo,E ao pé dela um regato serpenteia… Nosso pai o Sol, nossa Mãe a Terra Estreitam-se em carícia fecundante…Mas já com sede ela descerra Sob os beijos viris do loiro amado. Os salgueirinhos finos, debruçados Sobre os fios de rútilos cristais,

Olham as claras águas, magoados Porque não podem debruçar-se mais Estes choupos formados em fileiras, Fitam o céu, esbeltos e direitos. Cobrindo a Terra, as loiras sementeiras São os leitos que brotam dos seus peitos Numa cama em flor basta de trabalho!

 Um bom velhote vai dormindo a sesta. Em cima, entre a folhagem do carvalho, Os pardais andam a chiar, em festa.

A todos os sons presto meu ouvido.E, aqui, esta ceifeira, como é bela!Para falar-lhe, finjo-me perdido…(Talvez perdido pelos olhos dela).De pé, com a foice, mostra-me o caminho…Que linda camponesa! Ai! Deus-me valha!…Rosto tostado, cheiro a rosmaninho,Chapéu grosseiro de grosseira palha…Tem a voz forte, o olhar profundo,E quando canta, canta fortemente.Mulher e terra! Tudo tão fecundo!Que belos campos para lançar semente!Passa uma aragem fresca. Há tanto ruído!Sinto em volta o bater de corações.Como isto é lindo, triunfal, florido No abraço imenso das fecundações!Lembra-me a minha bela, o seu cabelo…Que linda vaca! E fita-me, tão mansa!E o dourado, a cor fulva do seu pelo,Vem-me recordar o ouro duma trança.Sinto-me forte e bom; sinto mais ar,Sinto-me mais alegre, mais sadio.Seria até capaz de improvisarMais versos pra cantar ao desafio.Vou apanhar, pra por na botoeira,Aquela flor pra por aqui no restolho.Curvo me pra a cheirar: que bem que cheira!Mas colhe-la é um crime… E não a colho!O amor anda pelo ar… Em cada umaDas coisas pelas outras se revela.Aquele segador que além se aprumaAbraça com amor aquela gavela.O meu amor! Querida! Se bem-vindaAo lugar em que o nosso amor é forte!A vida é toda amor, é toda linda,

(VASCO, Neno. Pelos campos.  Revista do Norte. São Luís, 16 ago. 1902).