[EUA] Declaração do anarquista e hackativista Jeremy Hammond ao Tribunal
[A seguir, declaração do anarquista e hackativista Jeremy Hammond lida no Tribunal de Nova York, durante o seu julgamento, em 15 de novembro passado. Ele foi escandalosamente condenado a dez anos de prisão por atos de desobediência civil e ação direta, por defender a libertação total da informação.]
Bom dia. Obrigado por essa oportunidade. Meu nome é Jeremy Hammond e estou aqui para ser sentenciado por atividades de hacking que executei durante meu envolvimento com os Anonymous. Estou preso no Centro Correcional de Manhattan há 20 meses, e tive muito tempo para pensar sobre como explicaria minhas ações.
Antes de começar, quero usar parte desse tempo para reconhecer e agradecer o trabalho das pessoas que me apoiaram. Quero agradecer a todos os advogados que trabalharam no meu caso: Elizabeth Fink, Susan Kellman, Sarah Kunstler, Emily Kunstler, Margaret Kunstler e Grainne O’Neill. Agradeço também a National Lawyers Guild, à Comissão de Defesa e Rede de Apoio Jeremy Hammond, aos Free Anons, à Rede de Solidariedade com os Anonymous, ao Grupo Cruz Negra Anarquista e a todos os demais que ajudaram com uma carta de apoio, escrevendo para mim, assistindo às audiências do Tribunal e divulgando minha causa e meu caso.
Agradeço também aos meus irmãos e irmãs trancafiados em prisões e aos que estão fora das prisões, ainda lutando contra o poder.
Os atos de desobediência civil e ação direta pelos quais estou sendo hoje sentenciado alinham-se todos pelos princípios de comunalidade e igualdade que guiaram minha vida. Invadi os computadores de dúzias de empresas gigantes e instituições do Estado, entendendo muito claramente que o que fazia era contra a lei, e que minhas ações podiam jogar-me diretamente numa prisão federal. Mas senti que tinha a obrigação de usar minhas habilidades e competências para expor e denunciar a injustiça – e para trazer à luz a verdade.
Poderia ter alcançado os mesmos objetivos por meios legais? Tentei de tudo, de abaixo-assinados e campanhas eleitorais a manifestações pacíficas, e descobri que os que estão no poder não querem que a verdade seja exposta. Quando dizemos a verdade ao poder, somos ignorados, no melhor dos casos; ou brutalmente reprimidos, no pior. Estamos em luta contra uma estrutura de poder que não respeita nem os seus próprios mecanismos de fiscalização e equilíbrio, imaginem se respeitam os direitos dos seus próprios cidadãos ou a comunidade internacional.
Minha iniciação política aconteceu quando George W. Bush roubou uma eleição presidencial em 2000 e, na sequência tirou vantagem das ondas de racismo e patriotismo depois do 11/9, para lançar guerras imperialistas, não provocadas, contra o Iraque e o Afeganistão. Saí às ruas para protestar, acreditando, ingenuamente, que nossas vozes seriam ouvidas em Washington e que conseguiríamos parar a guerra. Em vez disso, fomos rotulados como traidores, espancados e presos.
Fui preso por numerosos atos de desobediência civil nas ruas de Chicago, mas só em 2005 comecei a usar minhas habilidades com computadores para quebrar a lei, em ação de protesto político. Fui preso pelo FBI por invadir os computadores de um grupo de direita, pró-guerra, chamado “Protest Warrior” – organização que vendia camisetas racistas em sua página na Internet e agredia grupos antiguerra. Fui acusado, nos termos da Lei de Fraudes e Abusos por Computadores, e o “dano visado” no meu caso foi arbitrariamente calculado, multiplicando por US$500, os 5.000 cartões de crédito com os quais operava a base de dados de “Protest Warrior”, o que resultou num total de $2,5 milhões. Minha sentença foi calculada a partir desse “dano”, embora nenhum cartão de crédito tenha sido usado ou algum dado tenha sido divulgado – por mim ou por qualquer outra pessoa. Fui condenado a dois anos de cadeia.
Na prisão, vi com meus próprios olhos a feia realidade de como o sistema de justiça criminal destrói a vida de milhões de pessoas mantidas em prisões fechadas. A experiência reforçou minha oposição contra as formas repressivas de poder e a favor de agir na defesa daquilo em que cada um acredite.
Quando fui solto, estava ansioso para retomar meu envolvimento nas lutas por mudanças sociais. Não queria voltar à prisão. Então, me dediquei ao trabalho de organizar comunidades, trabalho de superfície. Mas, com o tempo, frustrei-me com as limitações das manifestações pacíficas, que me parecem reformistas e inefetivas. O governo Obama continuou as guerras no Iraque e no Afeganistão, aumentou o uso de drones e não fechou a prisão da Baía de Guantánamo.
Por essa época, eu acompanhava o trabalho de grupos como Wikileaks e Anonymous. Era inspirador e estimulante ver as ideias do hackativismo afinal dando resultados. Fiquei particularmente motivado pela ação heroica de Chelsea Manning, que revelou ao mundo as atrocidades cometidas pelos militares estadunidenses no Iraque e no Afeganistão. Ela assumiu enorme risco pessoal para vazar essa informação – porque acredita que a opinião pública tem o direito de saber, e por esperar que suas revelações seriam um passo positivo para pôr fim àqueles abusos. Fica-se com o coração apertado, só de ouvir contar sobre o tratamento cruel que ela recebeu numa prisão militar.
Refleti profunda e longamente sobre escolher outra vez esse caminho. Tive de perguntar a mim mesmo: se Chelsea Manning mergulhou no pesadelo abismal da prisão, porque lutava pela verdade, como poderia eu, de boa consciência, fazer menos que ela, já que eu era capaz? Concluí que o melhor modo de demonstrar solidariedade era dar continuidade ao trabalho de expor fatos e enfrentar a corrupção.
Aproximei-me dos Anonymous, porque acredito em ação direta, descentralizada e anônima. Naquele momento, os Anonymous estavam envolvidos em operações de apoio aos levantes da Primavera Árabe, contra a censura, e em defesa de Wikileaks. Eu tinha muito a oferecer como contribuição, incluindo competências técnicas, e podia articular melhor ideias e objetivos. Foram tempos entusiasmantes – o nascimento de um movimento digital de resistência, quando os conceitos e as competências do hackativismo estavam ganhando forma.
Interessava-me especialmente o trabalho dos hackers de LulzSec, que estavam quebrando alguns alvos importantes e iam-se tornando cada vez mais políticos. Por essa época, falei pela primeira vez com Sabu, que era muito aberto sobre as ações de hacking que ele dizia ter cometido, e estimulava os hackers a unir-se para atacar sistemas de computadores de grandes unidades do governo e de megaempresas, sob a bandeira do movimento “Anti Security”. Mas logo no início do meu envolvimento, os outros hackers de Lulzsec foram presos; restei eu, para quebrar sistemas e escrever press releases. Sabu: Hector Xavier MonsegurAdiante, eu descobriria que Sabu foi o primeiro a ser preso, e que, durante todo o tempo em que eu falava com ele, ele já era informante do FBI.
Os Anonymous também se envolveram nos estágios iniciais de Occupy Wall Street. Participei regularmente nas ruas, como militante de Occupy Chicago, e entusiasmei-me ao ver um movimento mundial de massa contra as injustiças do capitalismo e do racismo. Ao final de uns poucos meses, as “Occupations”chegaram ao fim, destruídas por ataques da Polícia e prisões em massa de manifestantes, arrancados de suas próprias praças públicas.
A repressão contra os Anonymous e o Movimento Occupy deu o tom da ação dos Antisec nos meses seguintes – a maior parte de nossas ações de hacking contra alvos da Polícia foram retaliações contra as prisões de nossos camaradas.
Eu, pessoalmente, tomei por alvo os sistemas policiais, por causa do racismo e da desigualdade com que se aplica a lei criminal. Tomei por alvo as indústrias e distribuidores de equipamentos militares e policiais, que lucram com a fabricação e a venda das armas que os EUA usam para impor seus interesses políticos e econômicos por todo o mundo, e para reprimir cidadãos estadunidenses aqui mesmo. Tomei por alvo empresas privadas de segurança da informação, porque trabalham secretamente para proteger interesses do governo e de empresas privadas, à custa de atacarem direitos civis individuais, minando e desacreditando ativistas, jornalistas e outros que trabalham para conhecer e divulgar a verdade; e porque vivem de disseminar a desinformação.
Nunca tinha ouvido falar de Stratfor, até que Sabu falou sobre eles. Sabu estava encorajando pessoas a invadir sistemas, e ajudando a facilitar e dar organização estratégica aos ataques. Chegou a fornecer-me pontos vulneráveis dos alvos, passados a ele por outros hackers. Por isso, foi grande surpresa quando soube que, durante todo o tempo, Sabu trabalhava com o FBI.
Dia 4/12/2011, Sabu foi contatado por outro hacker que já havia invadido a base de dados dos cartões de crédito de Stratfor. Sabu, então, sob o olhar atento dos agentes do governo que o estavam manipulando, levou o hack para o movimento Antisec, convidando aquele hacker para nossa sala privada de bate-papo, onde ele forneceu os links para baixar toda a base de dados dos cartões de crédito, além dos pontos iniciais de vulnerabilidade para acessar os sistemas de Stratfor.
Passei algum tempo pesquisando Stratfor e revisando a informação que nos fora fornecida, e decidi que suas atividades e a base de clientes tornavam a empresa alvo bem merecido. Achei curioso que os ricos e poderosos clientes da base de dados de Stratfor só usassem seus cartões de crédito para doar para organizações humanitárias, mas meu principal papel no ataque era obter as pastas dos e-mails privados de Stratfor, onde, tipicamente, estão os segredos mais sujos.
Demorei mais de uma semana para conseguir mais acesso aos sistemas internos de Stratfor, mas acabei entrando no servidor principal. Era tanta coisa, que precisamos de vários servidores nossos para transferir os e-mails. Sabu, que estava envolvido em todos os passos da operação, ofereceu um servidor – que ele recebera do FBI e era monitorado pelo FBI. Nas semanas seguintes, os e-mails foram transferidos, os cartões de crédito usados para doações, e os sistemas de Stratfor foram desconfigurados e destruídos.
Por que o FBI nos apresentou o hacker que descobrira a vulnerabilidade inicial e por que o FBI permitiu que ele continuasse o que havia começado são coisas que, para mim, continuam a ser um mistério total.
Resultado da ação de hacking contra os sistemas de Stratfor, conhecem-se hoje alguns dos perigos de haver uma indústria privada de inteligência sem qualquer tipo de regulação. Revelou-se através de Wikileaks e do trabalho de outros jornalistas pelo mundo, que Stratfor mantinha uma rede de informantes pelo mundo, informantes que a empresa usava para todos os tipos de atividade ilegal de vigilância, sempre a serviço de grandes empresas multinacionais.
Depois de Stratfor, continuei a quebrar outros sistemas-alvos, usando uma poderosa “zero day exploit” que me permitia acesso de administrador a sistemas que rodavam a popular plataforma Plesk de hospedagem de rede. Várias vezes, Sabu me pediu que lhe desse acesso a essa exploração. Recusei sempre. Sem ter seu próprio acesso independente, Sabu continuou a me fornecer listas de alvos vulneráveis. Invadi inúmeras páginas que ele me sugeriu, descarreguei as contas de e-mails e bancos de dados roubados no servidor FBI de Sabu; e passei a ele senhas e backdoors que permitiram que Sabu (e, portanto, também o FBI que controlava Sabu) controlassem aqueles alvos.
Essas intrusões, as quais foram todas sugeridas por Sabu quando já cooperava com o FBI, afetaram milhares de nomes de domínio; na grande maioria eram páginas oficiais de governos estrangeiros, dentre os quais XXXXXXX, XXXXXXXX, XXXX, XXXXXX, XXXXX, XXXXXXXX, XXXXXXX e XXXXXX XXXXXXX. Num caso, Sabu e eu demos informação de acesso a hackers que trabalharam para desconfigurar e destruir muitas páginas oficiais de governo em XXXXXX. Não sei como outras informações que lhes forneci podem ter sido usadas, mas penso que a coleta e o uso desses dados, pelo FBI e, portanto, pelo governo dos EUA, têm de ser investigados.
O governo hoje está celebrando minha condenação e minha prisão, na esperança de que fechará a porta e encerrará a história para sempre. Eu assumi plena responsabilidade pelos meus atos, quando me declarei culpado. Quando o governo dos EUA será forçado a responder pelos seus crimes?
Os EUA inflam a ameaça que os hackers representariam, para justificar os negócios multibilionários do complexo industrial da cibersegurança, mas, ao mesmo tempo, o próprio governo é também responsável pela mesma conduta que ele mesmo processa e condena, e diz que trabalha para prevenir. A hipocrisia da “lei e da ordem” e as injustiças causadas pelo capitalismo não podem ser“curadas” por reformas institucionais; só podem ser corrigidas por desobediência civil e ação direta. Sim, eu violei a lei. Mas acredito que às vezes as leis têm de ser violadas, para criar espaço para a mudança.
Nas palavras imortais de Frederick Douglas, “O poder não dá nada que não lhe seja exigido. Nunca deu e nunca dará. Descubra a quê algum povo submeteu-se em silêncio, e você terá a exata medida da injustiça e dos malfeitos impostos àquele povo, e a injustiça e os malfeitos continuarão, até que o povo se levante contra eles, seja com palavras seja com armas, ou com ambos. Os limites de cada tirano podem ser medidos pela capacidade de tolerar dos que eles oprimem.”
Não estou dizendo que não me arrependo de nada. Percebo que divulguei informação pessoal de gente inocente, que nada tinha a ver com as operações das instituições que tomei como alvos. Peço desculpas pela divulgação de dados que tenha ofendido pessoas e eram irrelevantes para meus objetivos. Acredito no direito individual à privacidade – contra a vigilância do Estado e contra agentes como eu; e vejo bem a ironia de eu ter-me envolvido em ataques contra esses direitos.
Meu compromisso é trabalhar para fazer desse mundo um lugar melhor para todos nós. Ainda acredito na importância do hackativismo como forma de desobediência civil, mas é hora, para mim, de mudar para outros modos de buscar a mudança. O tempo de cadeia pesa muito sobre minha família, meus amigos e a comunidade. Sei que precisam de mim em casa. Reconheço que, há sete anos, já estive à frente de um juiz federal, enfrentando acusações semelhantes, mas isso não diminui a sinceridade do que digo aqui hoje.
Custou-me muito escrever isso, para explicar minhas ações, sabendo que o que fiz – sinceramente – pode custar-me ainda mais anos de vida na cadeia. Sei que posso ser condenado a dez anos, mas espero que não seja, porque acredito que há muito trabalho a ser feito.
Mantenham-se fortes e continuem a lutar.
Jeremy Hammond
Sexta-feira, 15 de novembro de 2013.
Para escrever a Jeremy:
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