Voltairine de Cleyre – A mais notável mulher anarquista da América

Em uma época de excessiva desigualdade salarial, de papeis sociais sufocantes para mulheres e de moralidade determinada pela igreja, de Cleyre se rebelou contra a ordem instituída.

Desde 1851, os obituários do New York Times têm sido dominados por homens brancos. Com “Os esquecidos”, estamos adicionando as histórias de pessoas notáveis cujas mortes foram ignoradas pelo jornal.

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Aos 24 anos, Voltairine de Cleyre compareceu diante da Philadelphia’s Unit Congregation para dar uma palestra provocativamente intitulada “Sex Slavery” (Escravidão Sexual).

Ela pediu à multidão reunida: “Deixe a mulher perguntar a si mesma, ‘Por que sou a escrava do homem? Por que dizem que meu cérebro não é igual ao dele? Por que meu trabalho não é pago igualmente ao dele?’”

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O ano era 1890.

Era uma época de excessiva desigualdade salarial, de papeis sociais sufocantes para mulheres e de moralidade determinada pela igreja, e muitos da crescente classe média americana estavam prontos para uma mudança.

De Cleyre dirigiu críticas ardentes ao capitalismo e ao poder do Estado, cujos abusos ela via presentes em várias facetas da vida, do trabalho à prisão e ao casamento (por duas vezes ela chegou a rejeitar pedidos de casamento).

Ela adotou o anarquismo como filosofia política e se tornou uma dxs participantes mais proeminentes e determinadxs do movimento, estabelecendo uma reputação como uma oradora memorável e conquistando, assim, a admiração de seus colegas do livre pensamento.

Emma Goldman, sua contemporânea, a chamou de “uma poeta-rebelde, a artista amante da liberdade, a mais notável mulher anarquista da América”.

Mais expressivamente, para os historiadores do período em questão, “ela mostrava que a opressão de gênero, o poder do Estado e o capitalismo estavam conectados”. Assim disse Sandra Jeppesen, uma professora da Lakehead University em Orillia, Ontário.

Ela não estava preocupada com questões femininas de acordo somente com o ponto de vista das mulheres, mas “porque ela era pobre, ela também estava envolvida com lutas da classe trabalhadora e com o trabalho de suporte a judeus imigrantes”, disse Jeppesen.

As ideias de Voltairine, as quais eram prolificamente propagadas em poemas e ensaios, eram baseadas em experiências pessoais.

Voltairine, cujo nome é uma homenagem ao filósofo iluminista Voltaire, nasceu em 17 de novembro de 1866, em Leslie, Michigan. Sua família lutava contra a pobreza. Seu pai, Hector de Cleyre, era um alfaiate itinerante francês que conseguiu sua cidadania americana lutando na Guerra Civil. Sua mãe, Harriet Elizabeth Billings, vinha de uma família abolicionista de Nova York.

A mais nova de três irmãs, de Cleyre criou uma escrivaninha colocando uma tábua em cima de um tronco de madeira, para que pudesse ter um espaço reservado para escrever. Ela esboçou seu primeiro poema aos seis anos de idade.

Ela passou três anos em uma escola católica na qual funcionava um convento, onde desenvolveu uma profunda animosidade em relação a dogmas e à obediência forçada. Mas a experiência também afiou suas habilidades retóricas.

Voltairine tinha apenas 19 anos quando começou a escrever e a dar palestras sobre Free Thought (Livre Pensamento), uma filosofia de questionamento sobre a religião tradicional e as crenças sociais. Ela viajou entre Ohio e Boston e se estabeleceu na Filadélfia, onde fundou, em 1892, um grupo social chamado Ladie’s Liberal League (Liga Liberal das Mulheres). O propósito do grupo era estimular discussões sobre sexo, proibição, socialismo, anarquismo e revolução. Como forma de renda, ela dava aulas particulares de inglês, caligrafia e música, em sua casa.

Em 3 de maio de 1886, oficiais da polícia de Chicago atiraram contra uma multidão de grevistas na McCormick Reaper Works, matando e ferindo vários homens. Como resposta, um grupo de anarquistas se encontrou perto da Haymarket Square na noite seguinte. Quando a polícia tentou dispersá-los, alguém jogou uma bomba e sete policiais foram mortos. Oito anarquistas foram presos, seis dos quais não tinham estado presentes quando aconteceu o incidente. Quatro foram enforcados, um quinto cometeu suicídio na prisão e os outros três foram perdoados anos depois.

Os homens instantaneamente se tornaram mártires para o movimento anarquista, e Voltairine canalizou sua indignação quanto à “infâmia” do julgamento e das execuções em um vigoroso endosso do anarquismo, discursando anualmente nos memoriais de Haymarket retomando o assunto por diversas vezes em seus escritos.

Ela escreveu em 1897: “À pergunta ‘Por que sou anarquista’ posso facilmente dar a seguinte resposta: ‘Porque não posso evitar’’.

Para além de seu ativismo, Voltairine teve muitos relacionamentos amorosos, mas nenhum plenamente satisfatório, de acordo com seu biógrafo, Paul Avrich. O sindicalista Dyer D. Lum, 27 anos mais velho que ela, foi o primeiro a tratá-la como um igual intelectualmente, mas a deixou desolada quando tirou a própria vida. Ela teve seu único filho, Harry, com James B. Elliot, um carpinteiro que era adepto das ideias do livre-pensador Thomas Paine, ainda que, eventualmente, ela repelisse ambos, relutante em ser uma mãe ou esposa.

O assassinato do presidente William McKinley pelo anarquista Leon Czolgosz em 1901 levantou uma onda de sentimento antianarquista. Quando o senador Joseph R. Hawley de Connecticut ofereceu $1,000 para qualquer um que atirasse em um anarquista, de Cleyre respondeu com uma carta dizendo a ele para poupar seu dinheiro, pois ele poderia matá-la.

“Vou ficar de pé diante de você a qualquer distância que queira, e você pode atirar, na presença de testemunhas”, ela escreveu. “Seu instinto comercialista americano não recebe isso como uma barganha”?

No ano seguinte, Voltairine teve de fato uma experiência com um assassino. Um antigo aluno que havia se tornado romanticamente obcecado atirou nela durante um ataque de ciúmes. Ela sobreviveu, e depois lutou para que ele fosse solto durante sua recuperação.

“Seria um ultraje à civilização se ele fosse preso por um ato que foi produto de um cérebro doente”, ela escreveu.

Mas por trás de sua inflamada pessoa pública se escondiam decepções e depressão, além de dores físicas crônicas e doenças recorrentes. “Nunca me sinto em casa, em lugar algum”, citada por Goldman. “Me sinto como uma criatura perdida ou errante que não tem lugar, e não consegue encontrar nada com o qual se sinta em casa”.

Desde tenra idade, ela sofria de uma doença respiratória, que às vezes a deixava fraca e de cama, e frequentemente reclamava de uma palpitação nos ouvidos. Certa vez, ela chegou a tentar suicídio tomando uma overdose de morfina.

Em 1910, tendo sua saúde em decadência, Voltairine estava desiludida com o trabalho que havia desenvolvido ao longo de sua vida, escrevendo para umx amigx: “Não vejo utilidade em fazer nada. Tudo se torna amargor em minha boca e cinzas em minhas mãos”. Ela se mudou para Chicago e esteve brevemente revigorada pelas notícias da revolução mexicana. Ela teve aulas de espanhol e se preparou para uma viagem até Los Angeles, a fim de estar mais perto do conflito, mas ficou doente.

Voltairine morreu em 17 de abril de 1917. Ela tinha 45 anos. A causa foi uma infecção craniana desenvolvida a partir de uma perfuração no tímpano. Ela está enterrada no Forest Home Cemetery em Chicago, perto do monumento aos mártires de Haymarket.

Apesar de seu sofrimento, ela escreveu que não teria trocado seu frágil estado de saúde por uma vida saudável se isso significasse abrir mão de suas convicções na causa anarquista.

Como ela disse em um ensaio de 1903 intitulado “The Making of an Anarquist”:

“Deixe-me manter a intensidade da minha alma, com todas as limitações das minhas condições, em vez de me tornar criação, sem propósito e sem ideais, das necessidades materiais”.

Via:: https://www.nytimes.com/2018/09/26/obituaries/voltairine-de-cleyre-overlooked.html

Relógio d’água
se liquefaz o tempo
pinga instantes.
– Kola