Esta semana que passou, como muitxs de vocês sabem, começou o julgamento dos integrantes da banda New Hit.
No dia 26 de agosto de 2012, na cidade de Ruy Barbosa, na Bahia, duas adolescentes foram estupradas por nove homens integrantes da New Hit, dentro do ônibus do grupo. As meninas se dirigiram ao veículo para pedir autógrafos e parabenizar um dos integrantes, que fazia aniversário. Lá, foram violentadas de forma brutal, com a conivência e também violência de um policial militar.
Entre os dias 18 e 20 de fevereiro, também em Ruy Barbosa, aconteceu a primeira audiência de instrução. É o momento em que a juíza ouve vítimas, testemunhas, defesa e acusação. Como não foi crime contra a vida, os estupradores não vão a Júri Popular, são julgados pela própria juíza a partir dos materiais colhidos na audiência de instrução.
O julgamento começou, mas está longe de ser concluído. Foi adiado para setembro. E, por mais vergonhoso que possa parecer, a banda continuará fazendo shows pelo nordeste. Sim, eles estão faturando alto em cima da fama que conseguiram. A repercussão foi ótima pra eles. O estupro compensa — é a mensagem que está sendo passada pela lerdeza da Justiça e o habeas corpus para que respondam em liberdade. Por isso é fundamental que haja protestos e boicotes aos patrocinadores em cada cidade que a banda for se apresentar. Todo o nosso apoio nas redes sociais é essencial.
Houve muitos protestos em frente ao fórum esta semana. Pedi a essas feministas, essas minhas heroínas incansáveis, que escrevessem um guest post contando como foi estar lá, lutando contra os estupradores, dando força pras vítimas. Maíra Guedes, 26 anos, professora e integrante da Marcha Mundial das Mulheres, na Bahia, atendeu o meu pedido.
Só queria dizer, antes de lhe passar a palavra, que tenho muito orgulho de vocês. Parabéns a todas essas meninas lindas, que tão bem representam o feminismo. Eu me sinto um pouquinho aí em Ruy Barbosa através de vocês. Obrigada pela luta!
Depois de quatro dias em Ruy Barbosa, voltamos para nossas casas. Mulheres vindas de diferentes lugares da Bahia: Salvador, Feira de Santana, Itabuna, Cruz das Almas, Cachoeira, Vitória da Conquista, Juazeiro… Todas com os olhos vibrantes, olhando umas para as outras com muita admiração, carinho e força. Seguiremos construindo ações em torno do caso New Hit. Firmamos um compromisso coletivo e não deixaremos que o caso caia no esquecimento, sabemos que é necessária a ação.
Chegamos em Rui Barbosa no dia 17, domingo, as 16h. Não imaginávamos como seria a recepção das moradoras e moradores da cidade. Assim que descemos do ônibus, colocamos nossas mochilas na escola municipal que ficamos alojadas, fomos pedir informações nas casas vizinhas. As moradoras saíram à porta e colocaram tudo a nossa disposição: panelas, chuveiros, gritos e punhos.
A decisão de ir a Ruy Barbosa foi tomada em outubro de 2012, quando o desembargador Lourival Trindade concedeu o habeas corpus aos nove integrantes da Banda New Hit e ao policial militar que foi conivente com a violência sofrida pelas duas adolescentes. Decidimos realizar um escracho feminista, inspiradas nas ações recentes realizadas no Chile, Argentina e Brasil para escrachar torturadores da ditadura militar. No caso dos escrachos contra torturadores da ditadura a palavra de ordem é: “Aqui mora um torturador” Em nosso caso, fomos até a casa de veraneio de Eduardo Martins, estuprador e vocalista da banda, e dissemos: “Aqui mora um estuprador!” Afirmamos que “Enquanto não houver justiça, haverá escracho feminista!”.
A possibilidade de mais uma vez os estupradores permanecerem livres e as vítimas encarceradas nos fez questionar, na ação, algumas questões: por que apenas 2% dos agressores de mulheres são condenados num país em que a cada 3 minutos uma mulher é violentada e que nos últimos 10 anos 43,7 mil mulheres foram assassinadas? Por que quando mulheres apanham, são estupradas, queimadas por homens, inúmeras são as justificativas aceitas pelo Estado de Direito Brasileiro para não condenar agressores e assassinos de mulheres? “Ela mereceu. Ela reagiu. Ela consentiu.” O caso New Hit traz mais uma vez à tona a discussão da conveniente culpabilização da vítima pela violência sofrida, da naturalização do estupro e das formas de prevenir e combater a violência contra a mulher.
Durante os quatro dias que ficamos em Rui Barbosa
realizamos ações por toda a cidade. Todo dia tinha operação lambe-lambe, teatro, batucada, música e debates. Fizemos formação política auto-organizada com diversos temas, teve análise de conjuntura, desafios do projeto feminista e popular, debate sobre violência contra a mulher, sobre política de encarceramento, sobre políticas públicas e racismo.
Nos utilizamos de linguagens diferentes para exigir a condenação dos estupradores. E a cada ação mais mulheres juntavam-se a nós e mais fortes ficávamos. Caminhando na rua encontrávamos também com os defensores dos estupradores, entre eles o empresário e produtor da banda, Sacramento, que num dos dias passou de carro por nós, soltou um beijo e disse: “Senta na minha pick-up!” Isso só fez aumentar nossa raiva e revolta. O argumento “elas entraram no ônibus porque quiseram, sabiam o que iria acontecer”, foi um dos que mais enfrentamos com a síntese: “Isso não é sobre sexo, é sobre violência. Estupro é crime. A culpa nunca é da mulher.”
Na segunda-feira, dia 18, já em frente ao fórum, quando gritávamos palavras de ordem com punhos cerrados, uma senhora me disse: “Minha filha, pra que tanta raiva desses meninos? Eles erraram, mas são meninos bons.” Eu sorri e respondi: “Não minha senhora, eles não são meninos bons. Nove homens estupraram duas meninas. O que elas viveram foi uma sessão de tortura. Enquanto uma delas era penetrada à força, ao mesmo tempo era segurada por outro que se masturbava e tentava colocar o pênis na boca dela. Ela recebia tapas no rosto e na bunda. Sangrava. No mesmo momento, a outra menina era violentada no banheiro em alternância.” A senhora ficou em choque. Pediu que eu parasse. Eu olhava no olho dela sem piscar. E disse: “Minha senhora, isso é amor pela vida das mulheres, amor pela humanidade. Nossa luta é por justiça”. Ela ficou atônita.
Algum tempo depois os estupradores chegaram e de imediato, guiadas pela indignação, furamos o bloqueio policial e fomos pra cima deles. Nesse momento a força que explodia em nossas vozes e corpos fez com que 2, 3, até 4 policiais fossem necessários para segurar cada uma de nós. Quando fomos arrastadas de volta ao limite estabelecido pela juíza, a senhora que antes havia dito que os estupradores eram meninos bons, me ofereceu água com os olhos marejados e com a voz baixa agradeceu por fazê-la sentir viva.
Outro momento forte aconteceu depois da cena sobre estupro que fizemos em frente ao fórum. Foi quando uma fã do New Hit entrou em nossa ciranda. A amiga dela falou “Oxe! Sai dai!”, e ela respondeu “Eu não. Vou ficar aqui com as meninas.” O riso tomou conta. Cada mulher que conquistávamos era uma vitória. E todo dia a roda crescia.
Outro momento de muita beleza foi quando
recebemos a carta das vítimas:
“Ei Meninas,
Como vocês sabem esses últimos seis meses não foram fáceis pra nós. Por causa da nossa coragem tivemos que abrir mão de muita coisa. Estamos longe da nossa família, de amigos e sem meios de comunicação.
Então aproveitei a oportunidade para agradecer a cada uma de vocês que saíram de suas cidades, de suas casas para vir até Ruy Barbosa nos dar força, mostrar que não estamos sozinhas e que temos que seguir esta batalha. Em vários momentos eu cheguei a mim (sic) culpar, a desisti de tudo. Mas sempre lembramos que não estamos sozinhas. Temos todas vocês nos apoiando e lutando junto com a gente (…)”.
Pulsávamos força, certeza, fogo e afago.
Vivemos um momento na conjuntura da vida das mulheres em que
a classe dominante patriarcal tenta consolidar a ideia de que a igualdade já foi alcançada e a luta feminista não é mais necessária. Essa ideia tenta ser difundida principalmente nos países que, por exemplo, possuem mulheres na presidência, ou em outros cargos importantes do Estado.
Porém, os dados relativos aos índices de violência às mulheres da classe trabalhadora são alarmantes. O que aconteceu em Rui Barbosa acontece todos os dias. É preciso estar em luta todos os dias. A conivência com a violência contra a mulher não está dissociada da forma como a sociedade se estrutura. Reagir é organizar-se em torno de um projeto de sociedade que garanta nossos direitos sociais, entre eles saúde, educação, reforma agrária… Para nós é preciso mudar a vida das mulheres para mudar o mundo, mudar o mundo para mudar a vida das mulheres.
Não podemos permitir a naturalização de atrocidades como essa cometida pelos integrantes da banda New Hit, de tamanha barbaridade e crueldade, fundamentadas no machismo que subordina, oprime e assassina milhões de mulheres. É preciso reagir de forma coletiva. É preciso ser Mulheres.
Uma das coisas mais importantes que aprendemos com a luta feminista é a solidariedade entre as mulheres. É revigorante a todo momento olhar para os lados e enxergar companheiras. É preciso que nossos corpos se tornem as armas contra o machismo, que nossa voz junte-se a outras tantas vozes. “Se antes éramos carne, é hora de ser a navalha”. Enquanto não houver justiça, haverá escracho feminista.
À ação, mulheres! Sejamos nós raio, trovão e ventania. Porque sem feministas, não há feminismo!
Eu tô na rua, é pra lutar,
por um Projeto Feminista e Popular!
Fonte: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br