Errico Malatesta — Revolta e Ética Anarquista
O anarquismo em sua gênese, em suas aspirações, em seus métodos de luta não está necessariamente vinculado a nenhum sistema filosófico. O anarquismo nasceu da rebelião moral contra as injustiças sociais. A partir do momento em que aqueles homens que se sentiram como sufocados pelo ambiente social em que estavam obrigados a viver e cuja sensibilidade caiu ferida diante da dor alheia, e ante a sua própria, e em que estes homens se convenceram de que grande parte da dor humana não se deve fatalmente a inexoráveis leis naturais ou sobrenaturais, senão que provém de fatos sociais que dependem da vontade humana — então se abriu o caminho que devia levar ao anarquismo.
– Errico Malatesta, Pensiero e Volontà, 01/09/1925
Errico Malatesta é, sem dúvida, uma das referências internacionais do movimento anarquista, figurando entre aquelas vozes que deram ao anarquismo seu corpo de concepções e práticas históricas. Juntamente com Proudhon, Bakunin e Kropotkin, Malatesta forma o quarteto que “pensou” o anarquismo, pesem as valiosas e quase desconhecidas contribuições de William Godwin e Max Stirner, e reservou para as gerações futuras um certo número de práticas com as quais os grupos e indivíduos pautaram sua atuação. Conhece-se algumas razões da pertinência histórica desse quarteto. Proudhon, o tipógrafo de Besançon, produziu a obra que o tornou o revolucionário mais conhecido de toda a França: O que é a Propriedade? Ou estudos acerca do princípio do direito e do governo, em 1840. A resposta entusiástica se tornou a máxima revolucionária mais famosa do século XIX: “É o roubo! E, implicando a negação da propriedade na negação da autoridade, deduz-se imediatamente de minha definição este corolário não menos paradoxal: a verdadeira forma de governo é a anarquia”. Ao contrário da tradição socialista de sua época, Proudhon concebeu algo completamente original em relação àquilo que ofereceram as concepções do saintsimonismo e pela tradição autoritária remanescente do jacobinismo; com efeito, ele proporá algo novo: inventou uma concepção antiestatal de gestão econômica, escapando da moda de sua época e dos prejuízos dela advindos. O que tornou possível para Proudhon esse gesto inventivo? Não se trata de responder nesse artigo a essa pergunta; mas, ela situa-se naquilo que podemos chamar de problematização do pensamento ou, em todo caso, na maneira pela qual verdades “menores” colocam em questão aquilo que até então era tido por verdadeiro; na maneira como saberes descentralizados e não-hierarquizados questionam, interrogam e, como que lançando um desmentido, retiram sempre os efeitos de poder pelos quais o verdadeiro era legitimado. Trata-se de um pensamento que não nasce dos conceitos, mas da sua negação e da declaração da sua insuficiência diante da vida; simultaneamente, é um pensamento que parte intuitivamente de um imediato sentimento da vida para depois devolvê-lo “teoreticamente”. O que está em jogo, portanto, é resolver o problema da vida, ao qual tudo o mais deve orientar-se para sua solução. “Um dia perguntei-me: Por que tanta dor e miséria na sociedade? Terá o homem de ser eternamente infeliz? E, sem me deter nas explicações dos empreendedores de reformas, que atribuem à miséria geral, uns à imperícia do poder, outros aos conspiradores e aos motins; outros ainda à ignorância e à corrupção gerais; cansado dos combates intermináveis entre a tribuna e a imprensa, quis eu próprio aprofundar o problema. Consultei os mestres da ciência, li cem volumes de filosofia, direito, economia política e história; e quis Deus que vivesse um século em que tanta leitura me fosse inútil!”.