ANARQUISTAS: ÉTICA E ANTOLOGIA DE EXISTÊNCIAS

Este não é, decididamente, o caso do livro que o leitor tem agora em suas mãos e disto podemos dar o testemunho pessoal de quem acompanhou a sua longa, laboriosa e fecunda gestação.

Este é um livro escrito com cérebro e coração, com neurônios e vísceras, mas composto com cuidado de perfumista, ou de alquimista se quisermos, na busca do resultado correto, na realização da obra rara, na combinação adequada – sem exageros nem faltas– dos fundamentos teóricos com o material empírico e a interpretação pessoal, a tão ansiada e tão pouco presente tese a ser defendida.

Com vistas a manter este tom ou, ousemos contra o espírito da obra dizer, este método correto, o autor teve que caminhar por sobre a navalha sem descair para os derrames subjetivos por um lado – que transformariam a obra em mero depoimento pessoal ou em trabalho de encômio ou polêmica, tendendo ao limite do romance – e nem para uma rigidez excessiva, uma servidão a modelos analíticos, mesmo os ditos libertários, que fariam do livro mais um Leito de Procusto onde a realidade, nele deitada à força, fosse, às marretadas e outra vez ainda, adequada ao modelo, tendendo, pois, ao limite do dogma.

Neste sentido é que vemos, do ponto de vista historiográfico e guardadas as devidas diferenças e proporções, uma convergência deste trabalho com os raros outros que ousaram com felicidade e semelhante cometimento, e aí pensamos – como exemplos típicos – na obra de quatro autores que sem dúvida revolucionaram os estudos do Anarquismo Brasileiro: Do Cabaré ao Lar de Margareth Rago; Mémoire et Oublide Jacy Seixas – cujo ineditismo em vernáculo ao nosso ver envergonha seriamente o editorialismo universitário brasileiro; O Espírito da Revolta de Christina Lopreatto e Clevelândia: anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil de Alexandre Samis. Depois de um século de “grande história” preocupada com as supostas estruturas econômicas fundamentais e com os fatos gerais, que muitas vezes revelaram-se quiméricos, estamos lentamente nos apercebendo que a tarefa fundamental do historiador talvez seja a de deixar os fatos concretos falarem por si ao leitor em uma linguagem inteligível para este ultimo.

Os recortes e a seleção de material empírico, os fundamentos, o método, os quadros gerais e a bibliografia seriam então apenas suportes, transdutores necessários a uma inteligência concreta e pessoal de um real que é sempre muito mais complexo do que parece à primeira vista e cujas dimensões são não apenas múltiplas mais multiplamente imbricadas… As barreiras e as dificuldades enfrentadas pelo autor para atingir tais resultados foram imensas e duríssimas.

Para chegar à simplicidade, à clareza e à elegância com que apresenta seus fundamentos e pressupostos, os fatos concretos habilmente coletados e expostos e as conclusões que de tudo isto com maestria extrai, foi necessário muito esforço e perseverança, uma áspera luta contra as dificuldades concretas do cotidiano, cuja existência – muito hipocritamente – a organização do nosso ensino universitário insiste em ignorar prosseguindo, como dizia o saudoso Maurício Tragtenberg, sem pru-14 ridos a sua tarefa de selecionar os já selecionados.

O autor, neste sentido nobre, é uma utodi data que venceu um a um estes inúmeros obstáculos mesquinhos, hipócritas, danosos, lançados no caminho daqueles que não estão pré-destinados, por sua pertença de casta, a se transformar em intelectuais.

Saiba o leitor que o autor formou-se trabalhando, e nem sempre nos melhores empregos e que lutou modesta, discreta, brava e encarniçadamente contra as dificuldades materiais, que não graduou-se em escola de prestígio, que teve que enfrentar as deficiências de formação de modo sereno, galhardo e paciente, adquirindo um a um e dos mais comezinhos aos mais sofisticados, os instrumentos necessários à análise intelectual.

Que mesmo durante a sua graduação teve que lutar não apenas por aquilo que se convencionou denominar “qualidade de ensino”, mas também contra a imbecilidade acadêmica que domina ainda as Ciências Sociais no Brasil e que tenta passar pela lebre do conhecimento científico o gato já rançoso da ideologia.

O cretinismo stalinista deixou suas marcas nas Ciências Sociais brasileiras, assim como o cretinismo monetarista deixou as suas nos estudos de Economia e de Administração, de modo que o marxismo, e quase sempre na sua mais miserável vulgata, é apresentado aos neófitos como onec plus ultrada análise histórica e sociológica; perde-se com isto tempo precioso na formação: um semestre de Teoria Política dedicado à leitura em classe d´O que Fazer de Lênin beira o estelionato intelectual, pois sequer se estuda o contexto no qual o texto foi produzido.

Tais dificuldades nosso autor teve também que vencê-las, acumulando às suas próprias custas, o mínimo de informações históricas, políticas e filosóficas necessárias às suas pesquisas e que lhe eram deslavadamente sonegadas nos bancos escolares.

Já no seu segundo ano de graduação ele começou a preocupar-se com o tema deste livro, projetando então um trabalho de conclusão de curso que foi a semente desta obra. Para tanto, defrontou-se com problemas metodológicos, acumulou sólida informação em Antropologia Cultural e Social, atacou o problema do Mito em seus aspectos culturais e filosóficos, leu, entre outros, Cassirer, Mannheim e Paul Ricoeur, repassou quase toda a produção intelectual sobre Anarquismo no Brasil escrita nos últimos 35 anos e finalmente, com raro talento e perseverança, deu início a um trabalho de coleta da memória de velhos militantes anarquistas da cidade de S. Paulo, que se reuniam entre o pós-guerra e o AI-5 em torno do Centro de Cultura Social.

Mais uma vez, nesta pesquisa de campo, pouco ficou devendo à sua escola; ao contrário ele mesmo foi buscar e quando preciso forjar, através da leitura e da discussão, os instrumentos necessários ao seu trabalho.

O resultado deste trabalho de campo enriquecido e iluminado pelas pesquisas coma documentação da época é soberbo e o leitor poderá examiná-lo, ao menos parcialmente, no sumário das entrevistas em apêndice no então TCC Mito eUtopia: a realidade do sonho em velhos militantes anarquistas. Seus15 estudos de mestrado, realizados no clima muito mais propício do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP permitiram finalmente que todos estes esforços atingissem o seu meritório fim e que a obra, tão laboriosa e amorosamente meditada e preparada, por fim desabrochasse no livro que agora Robson Achiamé põe à disposição do público brasileiro.

O trabalho de Nildo Avelino, pois, além de honrar mui merecidamente o seu autor, é uma prova inconteste da vitalidade dos princípios do socialismo libertário e da autogestão pedagógica que não são apenas praticáveis como extremamente profícuos quando concretamente aplicados.

Esta contribuição ao entendimento do Anarquismo no Brasil, não se destaca apenas pela sua qualidade acadêmica, mas também pode se parear aos esforços de outros militantes que, de uma perspectiva mais clássica como Edgard Rodrigues por exemplo, há décadas vêm se dedicando à preservação e à divulgação da memória do Movimento Anarquista no Brasil.

Se não podemos sinceramente desposar – e é bom que isto seja dito com honestidade e clareza –algumas das teses que o autor defende em seu trabalho, não podemos deixar com isto de admirar o magnífico resultado de conjunto, nem de louvar o esforço empenhado no resultado e nem de admitir a importância fundamental do trabalho para o esclarecimento de um período ainda muito pouco estudado da história do Movimento Anarquista no Brasil, infelizmente envolto ainda nas brumas do debate ideológico. Que o leitor possa assim extrair de sua leitura tanto prazer e proveito quanto o que nós dela extraímos

Via: Academia