A Justiça Criminal Anarquista
Com as frequentes notícias sobre reformas no sistema criminal, este é um bom momento para revisitar algumas das várias abordagens anarquistas para a questão dos crimes e punições. Uma delas, delineada por Robert Anton Wilson e Robert Shea no artigo Anarchism and Crime, permanece tão relevante hoje quando na época em que foi escrita — nos anos 1970, durante a Guerra do Vietnã, o escândalo do Watergate e toda a instabilidade social de então. Anarchism and Crime não foi o primeiro trabalho conjunto de Wilson e Shea. Eles também foram coautores da clássica trilogia de ficção científica Illuminatus! e também já haviam trabalhado juntos como editores na revista Playboy. Os dois continuaram a trabalhar juntos por toda a vida, editando e escrevendo para várias das mesmas publicações. Grande parte de seus trabalhos mais interessantes (embora esquecidos) de crítica social estão enterrados em jornais e revistas obscuros publicados ao longo de cinco décadas. Anarchism and Crime é um desses artigos, originalmente escrito para a revista neopagã Green Egg.
Wilson e Shea começam Anarchism and Crime abordando a questão mais óbvia: “E quanto aos assassinos, ladrões e estupradores? O governo nos protege dessas pessoas atualmente. Você simplesmente os deixaria soltos?” Mas antes que eles abordem essa inevitável e importante objeção ao anarquismo, Wilson e Shea cuidadosamente avaliam o sistema criminal atual administrado pelo estado. Com isso, eles contestam as premissas falhas em que a questão se baseia.
Como muitos anarquistas anteriores, os autores abrem sua avaliação do sistema de justiça criminal estatal afirmando que o próprio estado é a maior organização criminosa de todas. Ao reivindicar um monopólio sobre o uso legítimo da força, o estado autoriza a si mesmo a execução dos maiores crimes — roubo, fraude e assassinato em larga escala. Como Wilson e Shea observam, “grandes bancos, corporações e monopólios fundiários financiam ambos os partidos políticos”, garantindo que o estado jamais perca seu poder sobre os cidadãos e que os financiadores do estado continuem a se beneficiar.
Por conta da ênfase do estado em proteger seus privilégios legais, ele tem poucos recursos para dedicar à punição de “pequenos” crimes, como roubos, assassinatos e estupros, fazendo com que, em sua maior parte, eles permaneçam sem resolução. Como Wilson e Shea reconheceram já em 1974, a função primordial das forças policiais estatais é esmagar “crimes” de comércio de drogas que desafiam o monopólio estatal sobre esse mercado.
Ao se depararem com a gigantesca organização criminosa conhecida como estado, Wilson e Shea não pedem mais leis, leis melhores ou governantes melhores. A única ferramenta que o estado tem em seu arsenal é a força coercitiva. Um maior uso da força só pode fazer com que surjam mais proibições para os cidadãos. Acrescentar mais leis ao corpo legal só pode nos levar ao ponto que Wilson e Shea descrevem em que “tudo aquilo que não é obrigatório é proibido e tudo que não é proibido é obrigatório”. Com essa evolução rumo ao estado policial, as burocracias administrativas crescem como um câncer, até chegar ao ponto em que todos os membros da sociedade devem policiar seus vizinhos para que as leis do estado sejam efetivas.
Antes de considerar o que constitui o direito criminal legítimo em uma sociedade anarquista, Wilson e Shea analisam o que significa legitimidade no atual sistema criminal. Há três categorias gerais de leis criminais, de acordo com os autores. As primeiras são as leis de “demonstração de poder”: leis nas quais o estado declara quanto pode roubar legitimamente dos cidadãos através de impostos e os propósitos para os quais ele pode fisicamente escravizá-los. São as leis menos questionadas e servem para reforçar o status da classe dominante. Essas leis são as mais fundamentais do estado.
A segunda classe de leis estatais serve para coação moral e pretendem coibir crimes sem vítimas (isto é, certos usos de drogas, sexo, comportamento, etc.). Embora ninguém seja prejudicado por essas atividades declaradas ilegais, o estado afirma sua moralidade sobre toda a sociedade pela força da lei. São leis que permitem ao estado exercer ainda mais controle (e, assim, têm interseção com a primeira classe de leis) e também servem para proteger certos elementos de seu esquema criminoso. Wilson e Shea dão alguns exemplos de leis morais coercitivas: “Não jogarás Parcheesi em noite de lua cheia. Não apostará em jogos de azar aos domingos. Não farás amor com sua esposa da forma que vocês dois gostam, mas da maneira que os legisladores preferem”. Através de seu tratamento jocoso das leis morais do estado, Wilson e Shea destacam seu completo absurdo. Infelizmente, milhões são oprimidos pelo sistema criminal simplesmente por não obedecer à moral absurda imposta pelo governo.
A terceira classe de leis criminais envolve aquelas com as quais a maioria das pessoas, senão todas, concordam: “É proibido roubar. É proibido estuprar. É proibido fraudar.” Em outras palavras, são aquelas leis quase universais e que nenhum legislador precisa aprovar para que sejam observadas. Wilson e Shea rapidamente dissipam a ideia de comum de que os anarquistas sejam favoráveis à desordem e ao terrorismo, explicando que, como o resto das pessoas, eles também desejam que essas regras sejam cumpridas.
Com isso em mente, Anarchism and Crime prevê que grande parte da terceira classe de criminosos desapareceria com a abolição do estado capitalista. David S. D’Amato, do C4SS, já escreveu sobre a relação entre o capitalismo e o crime, observando que o crime dentro das circunstâncias atuais reflete a falta de oportunidades econômicas — um problema sistêmico. Como D’Amato, Wilson e Shea acreditam que:
Se as pessoas pudessem trabalhar por conta própria — se recebessem todo o produto de seu trabalho através de um sindicato de trabalhadores — quase todas as motivações existentes para os crimes desapareceriam. Se você não precisasse pagar impostos e aluguéis, começando amanhã, seu poder de compra mais que duplicaria. Se outras formas de exploração e roubo, através dos juros do sistema financeiro, também fossem abolidas, seu poder de compra mais que quadruplicaria. Quanta inveja, quanta preocupação com dinheiro, quanto medo irracional, quantas úlceras, pesadelos, dores de cabeça e outras motivações para trapacear ou roubar um pouco sobreviveriam se essa simples justiça econômica fosse alcançada.
Para Wilson e Shea, grande parte do que se constitui como crimes reais naturalmente seria eliminada em uma sociedade em que as pessoas têm liberdade para escolher seus caminhos para a prosperidade. Boa parte dos assassinatos, fraudes e roubos são motivados por necessidade graças às oportunidades limitadas do capitalismo. O regime estatal capitalista garante que muitos cidadãos sejam colocados contra a parede sem a possibilidade de fazer escolhas econômicas significativas — sem poder trabalhar a não ser com a autorização do estado para quase todo ato. E essa permissão frequentemente é impossível obter, uma vez que muitas das proibições ao trabalho sob o capitalismo são intencionais e servem para proteger a elite da competição. Aqueles que estão presos nas engrenagens desta máquina econômica frequentemente devem recorrer à exploração dos vizinhos para seu sustento. A pura justiça econômica é uma das soluções anarquistas para o mal capitalista.
Aqui, devemos lembrar da lição de Sheldon Richman de que o anarquista não prevê uma utopia. Os anarquistas devem ter cuidado para não pintarem uma imagem perfeitamente rósea da situação de abolição do estado. As pessoas continuarão a ter problemas com ou sem o estado, mas os anarquistas preveem que haverá uma gama maior de soluções pacíficas disponíveis sem a existência do estado. Ao ver os estados como as maiores organizações criminais do mundo, os anarquistas estão conscientes dos enormes ganhos para a paz que seriam imediatamente garantidos pela sua abolição.
Wilson e Shea concluem Anarchism and Crime respondendo à objeção inicial: o que fazer com os “malucos violentos” — os membros da sociedade que cometerão crimes por prazer? Sua abordagem envolve prevenção e punição. Uma vez que os criminosos desapareceriam rapidamente com a liberdade econômica, muitos criminosos seriam dissuadidos de uma vida de crime em uma sociedade mais livre, com um sistema educacional e familiar mais permissivo.
Os autores acreditam que a atuação dos pais e das escolas em um mundo estatal é indevidamente severa, servindo para preparar as crianças para uma realidade brutal de um capitalismo canibalesco e de seu programa-irmão: a guerra. Ou seja, as crianças são suprimidas, tanto em casa quanto na escola, para se reajustarem aos rigores da vida sob o estado. Ao permitir “famílias abertas e escolas abertas” — essencialmente associações voluntárias no nível familiar — uma sociedade menos autoritária começa a florescer, onde as crianças passam a ter a mente mais aberta, se tornam menos violentas e se transformam em membros cooperantes da sociedade adulta. Grande parte da repressão sexual e moral atual também se diluiria sem a imposição estatal de um sistema educacional unificado, o que resultaria em homens menos agressivos e depravados — eliminando aqueles que são os maiores agressores do mundo atual.
Para os criminosos remanescentes, a “punição” seria radicalmente diferente na sociedade imaginada por Wilson e Shea. Os autores listam várias alternativas aos métodos violentos de punição exigidos pelo sistema criminal estatal. Ao invés da tortura, da prisão e da execução, os anarquistas do passado e do presentem exploram uma variedade de sistemas alternativos, como o ostracismo, a restituição e a indenização e sistemas de justiça privados. Ao invés de descartar essas ideias como absurdas e impossíveis, Wilson e Shea estimulam os leitores a considerar como esses sistemas foram usados historicamente e continuam a sê-lo atualmente com grande êxito em vários contextos não-estatais de pequena escala. Ao invés de prescrever uma forma particular de justiça criminal, Wilson e Shea simplesmente defendem a abolição total do estado para permitir que indivíduos e grupos moldem seus sistemas para melhor.
Enquanto observamos as terríveis injustiças perpetuadas pelo sistema estatal atual no noticiário da noite, talvez devamos passar a entreter as grandes ideias de Wilson e Shea.
Traduzido por Erick Vasconcelos.
A justiça é elitista e burguesa. Está a serviço do capital, para proteger ricos e castigar pobres!A Justiça é cega, sua balança desregulada e sua espada sem fio.
– Millor Fernandes
“Não existe o outro, tudo é você. Então, colocar-se no lugar do “outro” gera consequências muito elegantes, necessárias e incrivelmente revolucionárias. Lao Tzu, que tinha umas ideias bem rocambólicas, praticamente inaceitáveis para o padrão mental da época e atual – por mais sofisticado que você pense que seja o padrão mental ocidental contemporâneo –, disse algo que considero uma pérola: ‘Onde há justiça não há compaixão’. Contemple.Justiça é quando você julga o outro. Compaixão é quando você não julga o outro. Quando você julga o outro cria um karma, existe uma lei de ação e reação: quando julga o outro você será julgado. Quando se compadece, colocando-se no lugar do outro, você resolve internamente. O problema está em pensarmo-nos separados uns dos outros. Nos vemos separados, nos sentimos separados, e é difícil convencer o nosso sistema neurológico do contrário. Aliás, ver a não-separação não é uma questão de convencimento, é a suprema compreensão, é um dar-se conta, absoluto. De repente, é vista a ilusão da separação, colocam-se os pingos nos ‘is’ e o outro deixa de existir. Você deixa de existir como imagem.O que corrompe as relações humanas é a mente, e a mente é plena inconsciência. Na medida em que começa a ver como ela se move, você se antecipa. Você aparece e ela não mais está, assim como a luz diante da escuridão. Consciência está presente.”
– Satyaprem