Hakim Bey

“Devemos esperar até que o mundo inteiro esteja livre do controle político para que pelo menos um de nós possa afirmar que sabe o que é ser livre?”
– Hakim Bey

Hakim Bey

Hakim Bey é um escritor, ensaísta e poeta que intitula-se como um “anarquista ontológico”. É o ainda o criador de um sem número de teorias relacionadas como as Zonas Autônomas e o Terrorismo Poético, do Ataque oculto ao Sufismo libertário. Bey tornou-se uma espécie de guru anarquista no início da década de 1990 amado por uns e odiado pelos demais (principalmente pelo monstro sagrado da ecologia social Murray Bookchin). Também foi comentador do comunalismo experimental de Owen e de Charles Fourier, dos falanstérios aos oceanos de limonada. Através de seus escritos trouxe à tona mais de uma polêmica além de muitas nuvens de poeira a descobrir monumentos enterrados no deserto da (imagin)ação política. Ler Hakim Bey tem o mesmo efeito que uma bomba, seja ela de revolta ou de simpatia, com a proposta por ele apresentada. Pela dimensão de sua influência (reconhecida até mesmo por seus críticos mais ácidos) é possível afirmar tranquilamente que Hakim Bey se converteu em um dos grandes teóricos do Anarquismo do final do século XX, início do século XXI. Hakim Bey é também um dos pseudônimos de Peter Lamborn Wilson e isso de fato pouco – ou nada – importa.

Seu livro T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária escrito em 1985 foi traduzido para vários idiomas sendo lido no mundo todo. Nele, a partir de estudos históricos sobre as utopias piratas, descreve a criação e propagação de espaços autônomos temporários como tática de resistência e esvaziamento do poder.

Contato com o anarquismo

Com o êxito da Revolução Islâmica Peter Lamborn Wilson se viu obrigado a sair do Irã retornando para os Estados Unidos. No início da década de 1980, tem contato com os escritos de René Guénon, e passa a estudar sistematicamente a filosofia anarquista, desde os escritos de Charles Fourier até os autores relacionados ao situacionismo. A partir destes estudos cria as bases para um sufismo heterodoxo e neopaganismo anarquista, que em parte estarão presentes em seus escritos. Passa a trabalhar em conjunto com o projeto sem fins lucrativos Autonomedia, no Brooklin, Nova Iorque.

Neste período passa a definir a si mesmo e as suas ideias como imediatista (sem mediação) e anarquista ontológico. Interessa-se também por diversos autores relacionados ao comunalismo experimental pesquisando a fundo desde os escritos de Charles Fourier à implementação de comunidades anarquistas na atualidade, ainda na década de 1980 chega a viver alguns anos na comunidade anarquista Modern Times.

Ao mesmo tempo debruça-se sobre a questão do surgimento do estado com base no debate existente nos campos de saberes da Antropologia e Arqueologia, especialmente nas reflexões de antropólogos como Pierre Clastres e Marshall Sahlins.

Escritos

A somar-se com os escritos das zonas autônomas, Wilson escreveu também ensaios sobre uma grande diversidade de temas que vão das mafias chinesas descentralizadas conhecidas como Tongs, ao comunalismo experimental de Charles Fourier, as conexões entre o Sufismo e a antiga cultura Celta, tecnologia, ludismo e o uso ritualizado de substâncias alteradoras da consciência na Europa e América.

Os textos poéticos de Bey apareceram em: P.A.N.; Panthology Um, Dois e Três; Ganymede; na revista Exquisite Corpse; e em vários panfletos conhecidos como Acolyte Reader. Muito destes poemas incluindo a série ‘Sandburg’, estão sendo coletados para serem futuramente publicados em um livro a ser lançado. Seus trabalhos podem ser encontrados regularmente em publicações como a Fifth Estate e na revista novaiorquina First of the Month. Wilson também chegou a publicar ao menos um romance, The Chronicles of Qamar: Crowstone.

No Brasil os escritos de Hakim Bey e Peter Lamborn Wilson têm sido publicados pela Editora Conrad e mais recentemente pela Editora Deriva. Muitos de seus artigos estão sendo traduzidos coletivamente pelos membros da iniciativa Protopia.

Hackers

Alguns escritores consideram que os escritos de Wilson como Hakim Bey serviram de base ideológica para os hackers. As ideias de Zona Autônoma Temporária e de Ataque Oculto às Instituições estão na base desse argumento. Em vários de seus escritos Bey defende uma guerra de guerrilha simbólica e midiática, contra os meios de comunicação capitalistas e corporações a se dar de forma furtiva e oculta, sem chamar a atenção para quem o faz, mas enfatizando e publicizando o máximo possível aquilo que é feito.

Nesse sentido Hakim Bey também contribui na opinião de alguns para uma nova leitura da ideia clássica no anarquismo de propaganda pela ação e ação direta.

Okupas

Parte dos ativistas do movimento Okupa que se engajam na ocupação de espaços abandonados e construções desabitadas e buscam transformar estes espaços em esferas de sociabilidade libertária, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa reconhecem suas estratégias políticas nos escritos a respeito das zonas autônomas de Hakim Bey. Este fato se reflete nas ocasiões em que Peter Lamborn Wilson foi convidado para falar em squats tanto na Itália quanto na Alemanha.

Raves

Especialmente devido ao seu livro Zona Autônoma Temporária, Bey tem sido adotado pela Cultura Rave nos Estados Unidos e na Europa. Os ravers têm identificado a experiência e promoção de raves como parte da tradição da “Zona Autônoma Temporária” delineada por Bey, particularmente a “free party” e a cena Teknival. Apesar de reconhecer alguns frequentadores de raves como seus leitores, Bey coloca em dúvida o entendimento destes com relação aos seus escritos, ao afirmar que fazem uma leitura seletiva de sua obra.

Hakim Bey: O Profeta Anarquista do Caos Eletrônico

1ª cena : Imagine um místico enlouquecido gritando numa montanha. Suas palavras são um misto de poesia e aviso, como as iluminações desses bárbaros visionários, Blake ou Nerval, como os antigos druidas, xamãs e profetas a vaticinar o futuro da tribo.

2ª Cena : Imagine agora um pirata. Pense nas comunas piratas livres dos mares perdidos, pense nos bucaneiros, nessas congregações misto de utopia e anarquia, pense até mesmo nos hackers modernos, esses nômades piratas de dados a surfar na net oceano de nossa época, onde a noção de propriedade, principalmente intelectual, é cada vez mais próxima de uma miragem fadada ao desaparecimento.

3ª Cena : Visualize um poeta, burilador de palavras a jorrar significados e imagens vertiginosas num turbilhão borbulhante, caótico, recheado de mensagens mas igualmente lírico, num ritmo fluido que lembre o desregramento dos sentidos de Rimbaud ou o caleidoscópio de imagens de Allen Ginsberg.

4ª Cena : Na Biblioteca de Babel, move-se um erudito. Imagine esse sábio que já percorreu os livros místicos do hinduísmo e do sufismo, que conhece os segredos dos neo-platônicos e dos alquimistas, os livros de emblemas da época barroca, infinitudes de poesia, que já leu utopistas e enciclopedistas, e todo um “contracânone” ou tradição de inconformistas que vai de Sade, passando por Fourier, Nietzsche, Baudelaire, Bakunin, até chegar aos luminares da ainda fértil contracultura americana, sejam eles Timothy Leary ou Robert Anton Wilson, ou ainda os subversivos teóricos do situacionismo, como Guy Debord e Raoul Vaneigem. Para articular tanta informação, esse erudito move-se por seus dados não de uma forma racional, mas como Salvador Dali teria formulado de maneira precisa: por um método crítico-paranóico, juntando dados aparentemente isolados, impensados, numa livre associação que ele chamará de palimpsesto, junção de camadas interrelacionadas.

O Profeta Anarquista do Caos Eletrônico

Todas as cenas agora juntas. O homem é um só. Seu nome : Hakim Bey.

O nome é antes uma persona de Peter Lamborn Wilson, um estudioso americano dos sufis, que chegou viver alguns anos no Irã e conviveu com comunidades de devirxes, estudando rituais secretos dos sufis. Tradutor de poesia sufi e teórico rebelde, Wilson publicou, entre outros, uma coleção de estudos sobre os anarquistas do século dezenove, em Escape the nineteenth century, e um livro polêmico sobre costumes secretos da tradição sufi com o título nada inocente de Scandal : Essays in Islamic Heresy, onde aborda desde a seita dos Assassinos de Hassan Ibn Sabah (um dos temas prediletos de William Burroughs), o consumo de haxixe e outros estupefacientes entre os sufis, e o hábito de contemplação pedofílica entre poetas no Islã. Não se assuste: ousadia e surpresa são uma permanente nesse pensador do impensável. Não bastasse ir bem além das fronteiras que Salman Rudshie sequer atravessou, Lamborn Wilson avançou mais ainda teorizando sobre nossa época, a crescente virtualização do pensamento e das transações econômicas, juntou a isso seu conhecimento cabal do ideário anarquista e dos movimentos subversivos que o precederam, e assim surgiu Hakim Bey.

Esqueça agora a pós-modernidade, esqueça a Nova Era, esqueça o fim da história. Hakim Bey já esteve lá, e, quem sabe, poderá lhe contar como serão os tempos vindouros. A contemplação do sublime tecnológico e a frivolidade paródica da pós-modernidade são absolutamente alheios a este ativista tecno-pagão e iconoclasta. Os anjinhos sorridentes do supermercado new age são quebrados a martelo pelo dionisismo nietszcheano brotando nas raves e por magos seguidores de Aleister Crowley. O conformismo dos pregadores do fim da história e da globalização é desafiado pelas hordas de anarquistas nômades que falam outra linguagem que não a do mercado das grandes corporações.

É da pena de Hakim Bey que surgiu o já clássico TAZ (Temporary Autonomous Zone) ou Zona Autônoma Temporária. A TAZ ou ZAT, em português, é livro de cabeceira(ou de tela, se preferir) de nove entre dez ativistas eletrônicos, e, pode ter certeza, eles não são poucos. Liberado de direitos autorais, como de resto toda a obra de Hakim Bey, a ZAT é como diz o próprio nome, uma zona de liberdade temporal, onde a livre expressão, o livre pensamento, a imaginação, crença e prática são exercido sem a repressão e o controle da autoridade, i.e. o Estado e a Mídia. Dado seu caráter temporário, volátil e passageiro, a ZAT tem a pretensão da realização utópica no aqui e no agora.

Sua grande inspiração são as utopias piratas dos séculos dezessete e dezoito e sua materialização mais fremente são as festas, celebrações coletivas, as raves, o carnaval, os sites de troca de livre informação, todo e qualquer lugar onde se possa exercer a plena liberdade mesmo que por uma curta duração de tempo. Lugar ideal de autonomia temporária, a internet, por seu caráter invisível permite, pelo menos por enquanto, essa troca nômade de experiências, esse intercâmbio de desejos livres. Lugar de desaparecimento, onde a presença é nada mais que um dado, a internet proporcionaria o ponto de fuga necessário para as estratégias de ataque à ordem global ora vigente. Para isso, Bey falará de uma contranet, uma rede de informações ligada aos membros do mundo oculto do underground e da contracultura, anarquistas, comunistas, hackers, cyberhippies, ecoguerrilheiros, e assim por diante. A ZAT seria o grande ponto de encontro, confluência de todas as tribos de discordantes, de xamãs, de tecno-rebeldes. Como tal, como vislumbre de uma utopia, a ZAT seria apenas o primeiro passo para a Zona Autônoma Permanente, aí sim, realização perene do desejo utópico.

Em seu filão de precursores, Bey citará os piratas bucaneiros, que formaram um república independente, estudará a utopia de Charles Fourier, com sua junção de arte e sexo na criação de um estado amoroso e chegará até mesmo à estranha república de Fiume, fundada pelo escritor italiano Gabrielle D´Annunzio, formada majoritariamente de anarquistas, segregados e párias sociais, putas, artistas e loucos em geral, uma piração do meio do século vinte, praticamente desconhecida em nossos manuais de história. Aí também poderão ser adicionadas as comunidades livres dos anos sessenta e setenta.

Pode parecer que não, mas a Zona Autônoma Temporária tem dado muito o que falar na internet. São numerosíssimos os sites em lingua inglesa com TAZ livre para download e eles vão de sites de estudos de tecnologia e sociedade, sites artísticos, de ativismo, de anarquistas, de contracultura e anos sessenta, de anti-copyright, neo-situacionistas ou de culture jammers. A influência de Hakim Bey é visível em toda uma nova geração de artistas e poetas, que já sentiam falta de alguém que levantasse a poeira como fizeram os beatniks nos anos cinquenta e sessenta. A ZAT reatualiza toda uma tradição de contestação nos Estados Unidos, que vem desde Henry D. Thoreau e sua Desobediência Civil, assim como do libertarianismo de Whitman. A nova geração de artistas, músicos e cineastas na linha anticopyright assim como os “congestionadores de mídia”, os provocativos culture jammers, com suas estratégias de guerrilha sabotando propagandas, interferindo em slogans e produtos massificados, alterando discursos dos meios de comunicação seguem nada menos que esse anseio utópico anti-capitalista.

Além disso, a crescente popularidade das raves, o aspecto tecno-xamãnico dos DJs nessas reuniões gigantescas de uma coletividade que transcende barreiras com a dança, igualmente revela esse desejo de liberdade e elevação.

Mas há muito mais deste Marco Polo do mundo underground. Uma infinidade de textos com sua rubrica e indefectível visão crítica estão espalhados pela rede. Alguns se inclinam mais para o ensaio, outros para a poesia. Coisas como CHAOS : the broadsheets of onthological anarchism (CAOS: os panfletos do anarquismo ontológico), pura poesia subversiva e inconformista.

Com idéias pertubadoras, imagens pouco aceitáveis, o libertarianismo de Hakim Bey é um vento fresco numa época de tanto conservadorismo como a nossa. Seu antídoto é poderoso frente ao marasmo pós-moderno e ao controle mental das maiorias silenciosas. Depois dele, muitos já surgiram. Outros surgirão.

Como Grant Morrison, Bey é um desses caras que conseguiu ligar os dados certos, fazendo as conexões mais inesperadas mas nem por isso menos corretas. Sua intuição e capacidade visionária nos põe anos à frente em relação ao que pode acontecer neste planeta. Não só. Sua re-visão do passado igualmente ilumina em relação a coisas às quais ainda não havíamos atentado.