Felicidade – John Zerzan

A felicidade é realmente possível em um tempo de ruína? Podemos de alguma forma florescer, ter vidas completas? A alegria é mais compatível com a vida de hoje?

Uma profunda sensação de bem-estar tornou-se uma espécie em extinção. Quantas vezes alguém ouve “é bom estar aqui?” (MATEUS 17:4, LUCAS 9:5, LUCAS 9:33) ou a referência de Wordsworth ao “prazer que existe na própria vida”? Grande parte da condição prevalecente e do dilema que ela coloca é expressa pela observação de Adorno: “Uma vida errada não pode ser vivida corretamente”.

Nessa era, a felicidade, se não for obsoleta, é um teste, uma oportunidade. “Ser feliz é ser capaz de se tornar consciente de si mesmo sem ter medo”. Parece que estamos desesperados por felicidade, pois estantes de livros, salas de aconselhamento e talk shows promovem infinitas receitas de contentamento. Mas os “bem batidos”, os chatos “se sentir bem” de pessoas como Oprah, Eckhart Tolle e Dalai Lama parecem funcionar, assim como o Happy Meal (refeição feliz), o Happy Hour (hora feliz) ou o convite da Coca-Cola para “Pour Happiness!” (emanar a felicidade!).

Acabou o otimismo superficial do passado, tal como foi. O evangelho obrigatório da felicidade está em farrapos. Como Helene Cixous colocou, “nós nascemos para a dificuldade em tirar prazer da ausência”. Sentimos apenas “um pouco de luz/ na grande escuridão”, citando Pound, que tomou emprestado de Dante.

Como podemos explorar isso? O que é esperado re: felicidade? À luz de tudo o que está em seu caminho ou o corrói, a felicidade é, principalmente, um acidente fortuito?

Muitas vezes, certamente, a felicidade é abordada em termos do que não é. O Declínio do Prazer, de Walter Kerr, começa assim: “Vou começar assumindo que você é tão infeliz quanto eu.”. “Somos uma sociedade de pessoas notoriamente infelizes”, de acordo com Erich Fromm. Mas não devemos sair por aí admitindo essa verdade fundamental sobre nós mesmos e a sociedade. Vários teóricos contemporâneos, a propósito, têm constantemente eliminado a noção do eu, redefinindo-o nada mais do que como uma intersecção de discursos mutáveis. Quando o eu é praticamente apagado, a “felicidade” não pode mais ser um tópico válido.

Mas nosso anseio pelo bem-estar não é tão fácil de ser anulado. Elisabeth Roudinesco fornece um julgamento plausível: “Quanto mais os ideais de felicidade e segurança são prometidos às pessoas, mais a sua infelicidade persiste, o já acentuado perfil de risco cresce e mais as vítimas de promessas não cumpridas se revoltam contra aqueles que as traíram”.

Nesse mundo precário, felicidade e medo são estranhamente unidos. As pessoas estão com medo. “Eles estão com medo”, Adorno afirmou que “eles perderiam tudo, porque a única felicidade que eles conhecem, mesmo no pensamento, é ser capaz de se apegar a alguma coisa”. Esta condição contrasta qualitativamente com o que é conhecido de muitas pessoas não-domesticadas: a falta de medo, a confiança no mundo que habitam.

A nação do Butão, no Himalaia, atraiu muita atenção, no meio da primeira década deste século, pelo seu conceito de Felicidade Nacional Bruta: a decisão de medir a qualidade de sua sociedade, não pela produção industrial (Produto Interno Bruto), mas em termos da felicidade de seus cidadãos. Aparentemente, no entanto, o Butão rapidamente perdeu o caráter um tanto isolado de sua cultura, o que estimulou a ideia da GNH, em primeiro lugar. Inundada pela cultura pop, a consciência das celebridades, os modismos do consumidor e o resto de uma modernidade globalizada, a ênfase na felicidade como valor nacional desapareceu.

A sociedade de massa restringe a “felicidade” às esferas do consumo e da distração em grande medida. No entanto, a felicidade continua sendo uma experiência de plenitude, em vez de esforços seriamente equivocados para preencher o vazio. Muitos estudos mostram que os níveis de felicidade caem com o aumento de acumulação de riqueza. Ao nos afastarmos da natureza, nos tornamos insensíveis à sua completude e nos aproximamos dela como outro objeto passivo a ser consumido.

Existe uma verdade da felicidade, em cuja base a felicidade não pode ser julgada? A felicidade é tão abrangente quanto imediata. Tem muitas facetas e manifestações. É elementar e potente; como a saúde, a felicidade é contagiante e gera esperança nos outros. A felicidade tem a ver com toda reação à vida, e só por isso é pessoal e misteriosa.

O filósofo Wittgenstein tinha um temperamento áspero e pessimista e experimentou sua parcela de intensa angústia. Seu retrato parece o de um homem infeliz, e, ainda, seu biógrafo, Norman Malcolm relata que suas últimas palavras foram: “Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa”. A breve vida de John Keats foi ofuscada pela doença, mas ele frequentemente alegou que as coisas são lindas porque morrem. As fontes de felicidade estão em várias esferas de nossas vidas, mas, caracteristicamente, elas não são tão separadas. A vida humana nunca foi vivida em isolamento, por isso buscamos experiências que são mais do que apenas significativas para nós mesmos. O insight de Vivasvan Soni diz muito: “Nenhuma parte da vida pode ser colocada entre colchetes como irrelevante para a felicidade. Toda a vida conta infinitamente. Não há tragédia maior do que a infelicidade, e não há responsabilidade maior para nós do que a felicidade.”

Na minha experiência, a pedra angular da felicidade é o amor. Aqui está a dimensão onde encontramos a maior satisfação. Frantz Fanon, mais conhecido por seu trabalho sobre outros assuntos, subscreveu um padrão de “amor autêntico – desejando para os outros o que se postula para si mesmo”. Há outras satisfações, mas elas combinam com a qualidade satisfatória e enriquecedora das relações amorosas? Se uma criança tem amor e proteção, existe a base para a felicidade ao longo da vida. Se nenhum dos dois é fornecido, as chances deles ou delas são muito limitadas. Se for para ser dado apenas um deles, acho que o amor supera até mesmo a proteção ou a segurança, em termos das chances de felicidade.

Alguns discordaram quanto a centralidade do amor. Nietzsche e Sartre parecem ter visto o amor como algo confinador, fechando as prerrogativas. Aquele mestre sem sangue da ironia barata, E. Cioran fornece esta pequena meditação: “Penso naquele imperador querido ao meu coração, Tibério, por sua amargura e ferocidade… Eu o amo porque seu vizinho lhe parecia inconcebível. Eu o amo porque ele não amava ninguém.”

Como seria uma história da felicidade? Uma vez que a felicidade era um foco central do pensamento no Ocidente. A ética a Nicômaco, de Aristóteles, por exemplo, é um dos principais discursos sobre o assunto. Epicuro passou a vida enfrentando a questão de como alcançar a felicidade, despertando a ira de nosso amigo moderno, Cioran. Este se referiu aos escritos de Epicuro como uma “pilha de compostagem”, citando-o como indicativo do falso caminho que ocorre “quando o problema da felicidade suplanta o conhecimento”.

Muito mais tarde, o relato Cartesiano das emoções, portanto, como tantas sensações entram em cena e Voltaire (1694 – 1778) foi o último escritor feliz, de acordo com Roland Barthes. O século 18 viu um dilúvio do escrever sobre a felicidade, principalmente focado no bem-estar privado. Uma despolitização profunda do que significava a felicidade estava acontecendo, às vésperas da sociedade de massa. Kant tipificou essa tendência, ligando – e igualando – a moralidade, orientada para o dever com a felicidade.

O novo século exibiu a ênfase romântica na alegria, e não na felicidade (Blake, Wordsworth, et al.) com forte conotação de alegria como aquilo que é passageiro. De fato, transitório foi o hino a um futuro esperançoso, expresso na Nona Sinfonia de Beethoven, em particular seu movimento final, baseado na “Ode à alegria”, de Schiller. O trabalho foi justamente denominado de a última música séria expressando felicidade/alegria. Como a vida industrial começou a se espalhar, não pode ser que Hegel tenha visto a história humana como o registro do infortúnio irredimível.

O trabalho assalariado moderno e a teorização de contratos sociais políticos (Rousseau, a Constituição dos EUA, etc.) legitimaram a busca da felicidade privada. Na esfera pública, a questão da felicidade geral foi subestimada. Recompensa tornou-se o nome do jogo. Para Hegel, propriedade e personalidade eram quase sinônimos. Marx associou a felicidade à satisfação de interesses, apenas.

O sentimentalismo era uma faceta importante do ethos cultural do século 19: o quadro emocional subjacente da comunidade perdida. Uma sociedade fragmentada e anônima, praticamente abandonada à meta da felicidade generalizada. O primitivo utilitarismo vitoriano de John Stuart Mill – menos bruto do que o de seu fundador, Bentham – pelo menos, não reconheceu o empobrecimento da época. Mill foi o último filósofo da felicidade social.

Jean-François Lyotard colocou “a retirada do real” no centro da experiência da modernidade. Estamos perdendo os referentes, as coisas reais, perdemos o contato do que é sentido com o que não é simulado. Como poderia a felicidade não diminuir no pacto? Ele declinou; a ascensão da tecnocultura é a descida da felicidade. O enfadonho frenético tecnológico de hoje mantém-se ainda mais afundado, com vários efeitos patológicos. Mas nossa busca permanece o que era para Spinoza: a busca pela felicidade, com a realidade de nossos corpos, em um mundo real e corpóreo.

Na década de 1890, Anton Chekhov visitou a Ilha de Sakhalin, com seus caçadores-coletores Gilyak. Ele observou que eles ainda não tinham conseguido lidar com estradas. “Muitas vezes” observou ele “você vai vê-los… abrindo caminho em fila única pelos pântanos, ao lado da estrada”. Eles estavam sempre em algum lugar e não estavam interessados em estar em nenhum lugar, na estrada do industrialismo. Eles ainda não haviam perdido a singularidade do presente, que a tecnologia tira. Com nossa diminuição de atenção, resumindo, a superficialidade do pensamento e a sede de diversões, o quanto estamos realmente no mundo? O eu desencarnado torna-se cada vez mais desvinculado da realidade, incluindo a realidade emocional.

Ansiedade substituiu a felicidade como a sensação mais marcante, agora que a comunidade está ausente. Nós não confiamos mais em nossos instintos. Mantendo uma grande distância dos ritmos da natureza e experiências primárias dos sentidos em sua concretude íntima, os “pensadores” líderes frequentemente consagram ou defendem esse estado infeliz e desencarnado. Alain Badiou, por exemplo, concorda com Kant que a verdade e a saúde geral são “independentes da animalidade e de todo o mundo dos sentidos”.

Mas o que é abstrato sobre a felicidade? Seus estados estão completos a cada momento – cada momento corporificado. “Cada felicidade vem pela primeira vez”, como Levinas percebeu. Czeslaw Milosz descreveu sua infância feliz: “Eu vivi sem ontem nem amanhã, no eterno presente. Ou seja, precisamente, a definição de felicidade”. A ironia e o distanciamento pós-modernos, com seus alicerces de abraçar a tecnoesfera, constituem mais um meio de nos arrancar do momento presente.

Um desejo humano mais básico é pertencer, experimentar a união com algo diferente de si mesmo. Bruno Bettelheim descreveu um sentimento, engendrado em seu caso pela grande arte “de estar em sintonia com o universo… [de] todas as necessidades satisfeitas. Senti como se estivesse em contato – em comunicação com o passado do homem e conectado com seu futuro”. Ele associou isso com “o sentimento oceânico” de Freud, a sensação de “um laço indissolúvel, de ser um com o mundo externo como um todo”.

Acho plausível ver isso como vestigial – como uma ligação visceral e sobrevivente a uma situação anterior. Há uma grande quantidade de literatura antropológica/ etnológica que descreve os povos indígenas que vivem em união com o mundo natural e entre si. A sobrevivência em si exigia uma ausência de fronteiras entre os mundos interno e externo. Nossa sobrevivência final exige que recuperemos essa unidade. Às vezes ainda sentimos um retorno a esse estado unificado. Muitas vezes, em aconselhamento psicológico, há uma busca por um tempo na infância, quando se era saudável e feliz. Indiscutivelmente, para aplicar a tese da “ontogenia recapitula a filogenia” cada um de nós reencena a história maior da humanidade. A designação de T.S. Eliot de nosso retorno é “através da porta desconhecida, recordada”.

Freud contrapôs civilização e felicidade porque a civilização (domesticação, mais precisamente) é “baseada no trabalho compulsório e na renúncia institual”. “Ter que lutar contra os instintos é a fórmula da decadência; enquanto a vida estiver ascendendo, a felicidade e o instinto são uma coisa só”, observou Nietzsche.

A internalização e a universalização dessa renúncia à liberdade são o que Freud chamou de sublimação. Como Norman O. Brown viu, a sublimação “pressupõe e perpetua a perda da vida e não pode ser o modo em que a vida é vivida”. O próprio progresso da civilização requer uma medida ainda maior de renúncia e uma ainda maior circunstância que nos separa a nós mesmos do nosso ambiente. E, no entanto, o “sentimento oceânico” ainda pode ser poderosamente sentido, lembrando o estado anterior do ser. Quanto mais fresca a vida, mais vivida e mais valorizada, a vida pode ser sentida depois de uma doença grave; isso pode acontecer, com a nossa recuperação da doença que chamamos de civilização.

Mas aqui estamos agora, muito longe de qualquer plenitude ou plenitude original. E o “horror” no julgamento de Adorno, “é que pela primeira vez vivemos em um mundo no qual não podemos mais imaginar um mundo melhor”. No momento, o único contexto feliz é o imaginário, ou, pelo menos, a felicidade alcançada em expressar a verdade sobre a infelicidade. Nas palavras sinceras de Milosz: “Parece que todos os seres humanos devem cair nos braços um do outro, gritando que não podem viver…”.

O objetivo da vida é vivê-la fortemente, estar totalmente desperto. Este objetivo colide com um novo mal-estar da civilização, um sentido de Fim dos Tempos de tudo, um cenário cultural “pós-” o que você quiser. Uma sensação de impotência promovida em grande parte pela doutrina pós-moderna de ambiguidade e ambivalência.

A felicidade implica a recusa da condição de “corpos dóceis” de Foucault, a insistência em ser vívida e não domesticada, a determinação de viver como “bárbaros” que resistem à falta de liberdade e ao entorpecimento da civilização. Um instinto nos diz que há algo diferente, por mais distante que pareça; nós sabemos que nascemos para algo melhor. A realidade da profunda infelicidade é a lembrança desse instinto, que vive e luta para ser ouvido. A história da felicidade não precisava se desdobrar da forma como aconteceu.

Em nossas próprias vidas somos muito sortudos por termos a sensação de ser abençoados, ter um pouco de alegria, um senso de valor. Por ter um certo espanto de estarmos aqui. Para nós mesmos, significado e felicidade estão sempre entrelaçados. Felicidade é fundamentada em significado; uma vida de significado é o sentido da vida. “Para a felicidade, o mesmo se aplica à verdade: a pessoa não a tem, mas está nela”, na formulação incisiva de Adorno.

Ele também disse: “A filosofia existe para resgatar o que você vê no olhar de um animal”. “Para me encontrar face a face”, nas palavras de Thoreau. Realizar-nos em nossas capacidades distintamente humanas dentro do que é possível (ou seja, não nos culparmos pelos limites impostos a nós). E para encontrar a força para falar o não dito. A infelicidade não é o resultado da compreensão da profundidade real de nossa situação; na verdade, esse entendimento pode ser libertador, fortalecedor. Pode levar a algo que dificilmente poderia ser mais importante: a busca de objetividade e imediatismo no mundo real. O projeto de confrontar a própria natureza de nossa infelicidade domesticada, civilizada e cheia de tecnologia.