O encontro de Dostoievski e Bakunin

Quando líderes socialistas e revolucionários europeus encontraram-se em Genebra, em setembro de 1863, sua intenção era fazer um grande congresso em defesa da paz e da liberdade. Todavia, nada de concreto obtiveram da reunião em que tiveram presentes celebridades como Garibaldi e o anarquista Bakunin, mas forneceram material suficiente para que o escrito Dostoievski escrevesse mais tarda uma das suas mais notáveis novelas.

Dostoievski em viagem 
Quando retornou da Sibéria depois da sua longa condenação ao degredo (causado por sua participação na “conspiração Petrachevski”, de 1849), Fédor Dostoievski havia amainado seu ardor anti-czarista. Em seguida, em 1860, publicara “Recordações da casa dos mortos”, uma sensacional novela na qual narrou sua experiência como prisioneiro num campo correcional siberiano que projetou enormemente seu nome no cenário literário russo. Do dia para noite voltara a ficar famoso tal como ocorre antes quando publicara “Pobre Gente”.

Bafejado pelo sucesso resolveu comemorar realizando um tour pelas cidades da Europa Ocidental (Berlim, Londres, Paris, etc.) até estabelecer-se em Genebra.

No caminho, freqüentando também estações de águas termais, ganhou e perdeu boa soma de dinheiro nos cassinos, tentando inutilmente saciar o vicio do jogo (experiência que relatou depois na novela “O jogador”)

Foi nesta aprazível cidade da Suíça francesa, acompanhado pela mulher Ana Grigorievna, que ele reencontrou no Café de La Courone, N.P.Ogarev um intelectual russo exilado que agia como braço direito de Alexander Herzen, a mais eminente personalidade russa da oposição ao czarismo, editor do jornal Kolokol (O sino) que fazia anos se encontrava no exterior.

Ogarev estava em Genebra naquele mês de setembro de 1863 para assistir ao Primeiro Congresso da Liga pela Paz e pela Liberdade, organizado por várias associações socialistas e anarquistas. Liga que foi a sucessora da antiga Liga dos Justos e precursora da Internacional Socialista que seria fundada no ano seguinte, em Londres, 1864.

Uma das principais atrações da reunião internacional foi a anunciada presença de Giuseppe Garibaldi, o herói da unificação italiana que chegou a Genebra num coche aberto recebendo os vivas da população e dos que lá estavam para o Congresso.

Vinha da sua espetacular façanha de haver tomado e ilha da Sicilia com seus mil camisas vermelhas e a reintegrado definitivamente ao corpo político italiano. Como valente nacionalista e patriota desmedido, a coragem em forma humana, Garibaldi sempre mereceu as maiores considerações e aberta admiração de Dostoievski, ele igualmente um ardoroso patriota.

Bakunin 
Não era, todavia, a mesma consideração que ele tinha por outro seu compatriota, que também fazia parte das grandes estrelas do Congresso, o anarquista russo Mikhail Bakunin.

Filho da nobreza russa, Bakunin, personalidade de natureza extremamente rebelde, desde que deixara definitivamente o império do czar depois de uma fuga espetacular do seu desterro na Sibéria, ocorrida em 1861, tornara-se um peregrino da revolução.

Desde os acontecimentos de 1848, a revolta denominada de “a Primavera dos Povos”, o anarquista russo, quando não estava preso, estivera envolvido em quase todos os levantes que ocorreram na Europa Ocidental. Não havia barricada ou assembléia popular em que ele não se fizesse ativo.

Motim feito homem, Bakunin ainda que fosse autor de artigos e ensaios radicais, não era um pensador como Proudhon ou Karl Marx, mas primordialmente um ativista que sempre estava oferecendo o peito e a bravura a qualquer aventura.

Dostoievski que assistiu algumas sessões do Congresso sem se deixar impressionar, não se fez presente no dia do discurso do líder anarquista, inteirando-se dele por meio dos jornais locais. E não gostou nada do que leu.

Entre a opressão e a liberdade 
O ano de 1863 foi singular pela oscilação pendular da opressão em direção à liberdade. No dia 22 de janeiro, patriotas poloneses, tanto os da facção vermelha como os da branca, uniram-se num levante anti-russo generalizado que também alcançou, a partir de 1º de fevereiro as terras da Lituânia.

A ambição dos revoltosos era garantir a fundação de uma República das Duas Nações livre do domínio do czar. Foram reprimidos violentamente pelas tropas de ocupação comandadas pelo general czarista Mikhail Muravyov, apelidado com todos o motivos de “o carrasco de Vilna”.

Na ocasião, no rescaldo da operação final, mais de cento e vinte patriotas poloneses foram fuzilados e centenas deles e de lituanos foram condenados à katorga, a prestar serviços forçados na Sibéria.

A violência da repressão russa sobre os insurgentes provocou muitos protestos entre os países ocidentais sem que na prática impedissem que a Polônia e a Lituânia perdessem qualquer esperança de autonomia, sendo engolfadas pelo Império de Alexandre II.

Bakunin, e um grupo de integrantes da Legião Polonesa, chegou a organizar uma expedição militar de apoio aos poloneses que deveria partir de Copenhagen, mais foi impedido pelo desacerto e confusão de dar prosseguimento a aventura.

O outro acontecimento daquele ano sensacional, todavia, foi auspicioso para os amantes da liberdade. Na guerra civil travada nos Estados Unidos, as tropas do Norte, lideradas pelo general George G. Meade, conseguiram infringir significativa derrota nos exércitos do Sul escravista, comandados pelo general Robert Lee, na batalha de Gettysburg, travada entre os dias 1º e 3 de julho.

Vitória que custou 50 mil vidas permitiu que a Proclamação da Emancipação dos escravos, decretada pelo presidente Abraão Lincoln, em janeiro de 1863, se tornasse realidade abrindo caminho para a aprovação da XIIIª Emenda que aboliu definitivamente com a escravidão naquele país.

Fato este que provocou enorme regozijo entre as forças progressistas da Europa que de certo modo sentiram-se compensadas: ainda que os grilhões fossem relançados sobre a Polônia e sua vizinha Lituânia, pelo menos, lá do outro lado do Atlântico, os negros norte-americanos haviam conquistado a alforria.

O que predominou no Congresso, entretanto, foi a pesada sombra da repressão russa sobre os pobres poloneses, o que vai explicar o pronunciamento de Bakunin em repúdio à política do czar.

Pelo fim do Império 
Vestido prosaicamente como um cossaco, o discurso trovejante de Bakunin clamou publicamente pela desaparição do Império Russo, prevendo que em algum dia do futuro, depois de uma derrota militar, ocorreria o seu desmembramento. Profetizou, ainda, que em seu lugar haveria uma confederação de países livres, os Estados Unidos da Europa, erguidos sobre outros marcos do que aqueles que davam sustentação aos antigos estados europeus.

Além disto, apontou a existência das nacionalidades como uma desgraça, pois elas impediam o verdadeiro congraçamento da humanidade, defendendo a necessidade da destruição total da ordem social como tal e sua substituição pela utopia anarquista.

As propostas de Bakunin e de outros oradores socialistas pareceram a Dostoievski puro delírio. Eram algaravias confusas e impraticáveis pelo evidente irrealismo. Escrevendo a sua sobrinha, a intelectualizada Sofia Ivanovna, o artista manifestou sua indignação com a idéia de que para alcançar o milênio anarquista, “para obter a paz na terra, deveria exterminar-se com a fé cristã: haveria que destruir com as grandes possessões para fazê-las pequenas, haveria que prescindir de todo capital, de modo a que todas as coisas fossem comuns, por ordem superior, etc.” usando o recurso do “fogo e da espada” (carta datada de 29 de setembro de 1867).

Evidentemente que ele como esquerdista arrependido não poderia devotar nenhuma simpatia a quem almejasse o desaparecimento do reino dos Romanov ou que condenasse as peculiaridades nacionais em nome de um cosmopolitismo revolucionário.

Crescentemente defensor da cultura eslava frente à ocidental, que como tantos outros conservadores considerava decadente e corruptora, o escritor não podia aceitar a sugestão do desaparecimento futuro das idiossincrasias e características peculiares aos russos como a devoção ortodoxa e a obediência ao czar.

Inspirando uma novela 
A desconformidade do escritor com o anarquista não cessou por aí. Sete anos depois, ele inspirou-se diretamente na figura de Bakunin para construir um dos personagens principais da novela “Os Demônios”(Biesi), um dos mais espetaculares romances políticos daquele século em que a literatura russa mostrou-se tão prodigiosa.

Baseado num caso real que envolveu um grupo de nihilistas russos liderados por Sergei Netcháiev, jovem ligado a Bakunin, que terminou por assassinar um companheiro, chamado Ivanov, com receito de que ele os denunciasse à polícia, crime que abalou profundamente a opinião pública da época.

Dostoievski encontrou naquele triste episódio material para denunciar os perigos das idéias importadas do Ocidente e o efeito corrosivo do terrorismo sobre a alma humana.

O líder anarquista aparece na novela como o aristocrata entediado Nikolai Stávroguin, que adere irresponsavelmente às ações revolucionárias apenas para afastar-se do tédio existencial. Seu braço direito é um militante um tanto tresloucado e fanático chamado Peter Stephanovitch Vierkhovienski, sombra literária de Netcháiev, que age como o organizador de uma serie de atentados e incêndios criminosos que deveriam acometer uma cidade do interior da Rússia.

Ambos, Stávroguin e Vierkhovenski, esperavam que a responsabilidade pelas operações recaísse sobre um engenheiro, integrante do grupo terrorista, que estava desiludido de tudo e se comprometera com eles a assumir a responsabilidade sobre tudo no momento em que se suicidaria.

A novela também é uma brilhante exposição sobre as várias correntes teóricas e políticas que embalavam as reuniões e projetos de ação dos revolucionários da época e marca o ponto de ruptura completo de Dostoievski, que no passado por igual tivera idéias subversivas, com os movimentos que pretendiam a deposição do czar e a supressão da Igreja Russa Ortodoxa.

Não se sabe se Mikhail Bakunin, que faleceu no exílio, na cidade suíça e Berna em 1876, chegou a ter conhecimento de que ele servira de modelo ao capitão dos terroristas denunciados por Dostoievski.

Bibliografia 
Dostoievski, Fédor – “Os demônios”. São Paulo: Editora 34, 2004.
Frank, Joseph – Dostoievski, Los años milagrosos 1865-1871. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
Rosal, Amaro del – Los congresos obreros internacionales em el siglo XIX. Barcelos: Ediciones Grilabo, 1975

Via: terra