A Revolução Anarquista Norte-Coreana (1929 – 1932)

INTRODUÇÃO AOS 80 ANOS DA CIDADE DE SHINMIN

Em 1929, agrupados em uma federação, anarquistas foram artífices e protagonistas do processo revolucionário anti-capitalista e anti-Estado no norte da península coreana e nordeste da China, mais precisamente na região da Manchúria.
Já se passaram mais de 80 anos desta ação inspirada nos ideais e princípios libertários, com base numa práxis revolucionária latente naqueles tempos onde as pessoas se esforçavam para alcançar a liberdade. Perto do final desta tentativa de revolução social, mais precisamente  a 24 de janeiro, Kim Jwa-jin, o comandante,  foi assassinado em uma emboscada, ele, um lutador histórico da guerra colonial coreana de independência e um dos principais incentivadores e apoiadores da Comuna. Depois de seu assassinato os vencedores  -dos lados nacionalistas, que fundaram a Coreia do Sul, e os stalinistas, que fundaram a Coreia do Norte-, não só evitaram escrever e interpretar esses anos desconhecidos para o ocidente, como contornaram a história da Coréia  no que aconteceu na Região Autônoma de Shinmin (ou Chong yi-bu em coreano romanizado):  contornar a experiência de mais de 2 milhões de agricultores autogestionados seria aceitável, mas se apoderaram da figura do referido militar como apenas mais um herói da independência coreana.
Curiosamente, a data do assassinato de Kim  Jwa-jin coincidiu com o assassinato do maior expoente do anarquismo japonês, o jornalista Kotoku Shusui, juntamente de outros 11 parceiros em 1911. Kotoku viveu e morreu confrontando abertamente o império e o estado japonês com críticas veementes ao sistema de classes do Japão e incursões coloniais sobre os povos sujeitos do Oriente. As voltas e reviravoltas da história de luta de Kotoku pelos oprimidos inspiraram milhares de militantes chineses, coreanos e japoneses nessa luta incansável contra o Estado, o capitalismo e o colonialismo na região. A Coreia anarquista e sua Comuna não foram uma exceção.
Kotoku Shusui
OBSERVAÇÕES E AS PERSPECTIVAS DE UM FATO HISTÓRICO

A história escrita
Por um lado, queremos refletir o porquê esta experiência revolucionária que durou cerca de três anos – entre 1929 e 1932 – passou despercebida na historiografia da esquerda, apesar de envolver mais de 2 milhões de coreanos. Neste sentido só a historiografia anarquista coreana resgatou este importante capítulo da revolução norte-coreana. Mesmo que o ex-ditador norte-coreano Kim II-sung, em suas “memórias”, tenha mencionado que durante estes anos três facções lutavam pela independência contra os japoneses: o PC coreano, os nacionalistas com o seu governo em Xangai, e uma “terceira facção separatista”. Provavelmente a intenção de Kim II-sung foi de esconder a identidade ideológica do setor organizado. Mas também há a clara intenção de apagar qualquer influência histórica comprovável de que um setor importante da esquerda pode levar a vitória uma experiência revolucionária antes da existência da Coréia do Norte marxista. Além de o líder stalinista atribuir a derrota da Manchúria contra os japoneses, para as brigas entre as facções nacionalistas e “separatistas”, para não mencionar os assassinatos e massacres ordenados pelo Partido Comunista.
Os setores nacionalistas que mais tarde fundaram a República da Coreia, instituindo uma ditadura sangrenta, também conseguiram apagar da história a participação ativa e decisiva do anarquismo na luta pela independência contra o Império japonês.
Felizmente o trabalho exaustivo de pesquisa e reconstrução histórica nos recuperou parte deste evento histórico de grande valor experimental para a nossa ideologia. Estudos como dos coreanos Ha Ki-rak (“História do movimento anarquista coreano”), Cho Sehyun (“Na Ásia Oriental também …”) ou Hwang Dong-Youn (“Por trás da Independência: A imprensa anarquista coreana…) tem apresentado investigações detalhadas sobre o assunto. Os papers do irlandês Alain MacSimoin da WSM, Jason Adams com seus “Anarquismos não-ocidentais” ou do sul-africano Lucien Van der Walt com “Para uma história do anarquismo anti-imperialista” têm representado uma importante contribuição para o assunto.
Na experiência histórica do anarquismo coreano que desencadeado no enclave de Shinmin fermentado a partir do início do século XX, vemos um resultado semelhante a outros processos em que o anarquismo organizado conhecia e poderia apresentar socialmente o seu projeto de revolução.  Em 1917 na Rússia, Ucrânia em 1919 e, 1936 na Espanha observaram-se as derrotas do impulso libertário em termos de autodefesa, contra o nacionalismo reacionário, e na traição e entrega dos partidos marxistas.
O contexto e a abrangência
Surpreendentemente, quando começamos a investigar e cavar o que estava por trás da história desta comuna revolucionária, a gênese e o auge do anarquismo coreano, e o quanto isso tinha a ver com a independência da Coreia, temos uma grande surpresa sobre a relação direta que existe entre eles. Talvez hoje, podemos dizer que, no momento da independência da Coréia do Império Japonês convergiram três grandes correntes políticas em magnitude organizacional e acumulação de forças, mas apenas uma acabou perdendo ao longo da história. As outras duas acabaram fundando repúblicas, estabelecendo fronteiras e novas ditaduras para controlar de volta um povo que vinha vivendo o absolutismo da ocupação japonesa durante décadas.
Como já foi mencionado, o processo de revolução social, que ocorre em Shinmin acontece no meio de uma guerra anti-colonial. No mesmo [processo revolucionário] foram alcançadas grandes propriedades rurais e pequenas cidades. Chegaram a instaurar, não sem inconvenientes, Conselhos de Administração, que substituíram e extinguiram em todos os níveis o Estado. O resultado da experiência também teve a ver com a forma como a história toda começou.
Uma revolução libertária “a La” coreana
Ao analisar os componentes das façanhas da Comuna podemos perceber no primeiro momento a influência dos anarquistas que retornaram do exílio como um fator que impulsionou as lutas sociais e as disputas políticas sobre o futuro da região. Por um lado, os anarquistas que retornaram de um Japão ou Xangai em processo de industrialização, com um movimento sindical forte e mobilizado irão insistir no caráter das lutas do incipiente movimento operário coreano. Os outros exilados do resto da China iriam propor uma luta anti-colonial, como a inclusão social em áreas rurais para promover as lutas de movimentos dom  campesinato. Esta última era a posição mais preparada que estava na Coreia durante o percorrer da década de 20.
Por outro lado, alguns dos fundamentos teóricos do anarquismo coreano esboçados no início do século XX retratam a luta cultural e identitária contra o domínio do colonialismo japonês. Um exemplo disso é o “Manifesto da Revolução Coreana” (Joseon Hyeong-myeong Seoneon), escrito pelo histórico militante anarquista Shin Chae-ho que expõe plenamente o papel revolucionário de um povoado com fortes raízes culturais invadido por um exército invasor.
Também destaca o internacionalismo militante no estabelecimento de alianças com o anarquismo japonês, chinês, vietnamita e de Taiwan. Defende-se também fortemente as lutas antiimperialistas incentivando uma guerra social contra o Império japonês, que exercia um sistema de domínio em toda a região, rechaçando as atrocidades cometidas pelo exército invasor.
Por fim, o manifesto enfatiza que as forças anarquistas não devem ficar à mercê dos nacionalistas e bolcheviques em um processo revolucionário, a fim de evitar que um Estado seja colocado no lugar novamente. O desenvolvimento desses conceitos veremos mais adiante em mais detalhes.
RAÍZES E ANTECEDENTES DO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO
Herança da luta anticolonial
Na Coréia, há uma história de revoltas populares antiestatistas, anticoloniais e sistematicamente anticapitalistas com magnitudes que alcançaram todo o país. Nos anos anteriores ao desenvolvimento da Comuna ocorreu um destes. Foi a Revolução Camponesa de Donghak de 1894 ao sul da Coréia que tinha levantado agricultores contra o governo local e contra qualquer monarquia fosse coreana, chinesa ou japonesa. Nessa revolução propunha-se uma igualdade entre todos os homens. A revolta foi esmagada pelo império japonês.
Um levante posterior de grandes proporções será o primeiro de março de 1919 como parte de uma proclamação da Independência, que reviveu os movimentos anticoloniais em todo o país. O Movimento da Independência de Samil (como foram conhecidas as primeiras manifestações de 19 de Março), que contou com a participação de inúmeras organizações anarquistas, foi brutalmente reprimido pelo exército de ocupação japonesa. O saldo foi de 7.500 mortos e 16.000 feridos durante a intentona revolucionária. Um dos ativistas do movimento foi Jeong-Wha-am que mais tarde fundaria com outros a Federação Anarquista.
Este evento foi um marco na história da luta pela independência da Coreia, uma vez que conseguiu fortalecer o sentimento de identidade do povo coreano. Aproveitando-se desta situação, um grupo de coreanos nacionalistas estabeleceu um governo provisório, em Xangai, na China.
Também nos meados dos anos 1920, fruto das lutas do ano 1919, deu-se o estopim para o início de uma luta em todas as frentes a partir de vários grupos políticos e sociais que procuravam deter a invasão do exército japonês na Manchúria. Em 1925, o império japonês lança a “Lei de Preservação da Paz”, que proibia a existência de qualquer organização que alteraria a (o) Kokutai (o regime do nacionalismo japonês). Entre os setores proibidos encontravam-se os anarquistas, que eram em sua maioria militantes de lutas operárias, estudantis, camponesas e culturais em toda a Coréia.
Influências libertárias na região
O contexto regional do Sudeste da Ásia ofereceu uma grande influência para que os anarquistas coreanos se aprofundassem nos níveis de organização e projeto revolucionários. Ademais pode-se concluir que os perseguidos políticos libertários da Coreia puderam também absorver [níveis de organização e projetos revolucionários], a partir de seus exílios na China e no Japão, das lutas sociais (sindicalistas, camponesas e estudantis) e políticas que estão sendo realizadas. Como veremos adiante, muito do que iria acontecer durante a década de 20 ‘na Coréia para níveis de agitação social e impulso político revolucionário tinha a ver com o retorno dos exilados impregnados com intenções de agitação. Baek Jeong-gi (1896-1934), um experiente militante do movimento anarquista foi um exemplo. “Gupa”, como era conhecido no jargão militante, encontrava-se em  1925 exilado na China e somava-se com a União Anarquista em Xangai. Em julho do mesmo ano começaram as ondas de greves gerais movimento operário em Xangai e Baek Jeong-gi estava militando entre os metalúrgicos filiados a seu sindicato. As massivas greves gerais na China, com a participação da militância anarquista (União Anarquista Chinesa), greves operárias no Japão, a abertura da Universidade Nacional de Trabalhadores em Xangai em 1928 impulsionada pelo movimento anarquista chinês, o Movimento de Auto-Defesa das Comunidades Rurais de Quanzhou na China em 1927-1928, e a criação da Seção de Pequim da Aliança da Juventude Negra foram um terreno fértil para o processo de desenvolvimento que faria anarquismo coreano naquela época.
Exilados no Japão por volta de 1922 Park Yeol, Jeong Tae-sung, Kim Chung-han, Hong Jin-yu, Choi Kyu-jong, Yuk Hong-kyun, Seo Dong-seong, Jang Sang-jung, Ha Sae-myeong, Hang Hyeon-sang,  Seo Sang-kyeong e outros conseguem construir a organização Futeishya (Revolta) com militantes anarquistas japoneses de renome como Noguchi Hinji, Kurihara Krzuo, Ogawa Shigeru, Kaneko Fumiko e Niyiama Shodai entre outros.
O trabalho internacionalista dos anarquistas coreanos também dá um impulso significativo para a criação de uma Federação Anarquista do Leste (Tung-fang, Wu Cheng-fu, Chu-i-che, Lien-Meng) com organizações-membro da China, Vietnã, Taiwan, Japão, Filipinas, Índia e Coréia, obviamente. A Federação Anarquista do Leste, que em 1928 disseminava o jornal “Dong Bang” (O Oriente), aprovava como base teórica própria o “Manifesto da Revolução Coreana” e teve Kim Jong-jin, uma referência do anarquismo coreano entre os seus militantes mais ativos. Um dos slogans da Federação do Leste foi “unir o proletariado de todo o mundo e, sobretudo das colônias orientais para derrotar o capitalismo internacional e imperialista”.
Anarquismo Coreano
Desde o início do século XX as idéias anarquistas eram permeáveis ​​em todas as esferas sociais da Coréia. A participação no Movimento Primeiro de Março não foi exceção. Como referido no início deste trabalho, os anarquistas coreanos entendiam muito bem o que se passava em um contexto de opressão em que o império japonês, com seus exércitos, tentavam controlar completamente a vida da sociedade coreana e que a própria burguesia local ansiava a independência para alavancar-se em classe dirigente. Entretanto influenciados pelo que estava acontecendo na região, os anarquistas coreanos começaram a criar e desenvolver organizações sociais e políticas, a fim de gerar projeto revolucionário aproveitando essa resistência ao regime imperial.
Por sua vez, a meados de 1920 e resultante da unidade organizacional dos anarquistas, foi aumentando o número de exilados, assassinatos e prisõs de militantes libertários através da perseguição do exército japonês e da sua polícia política [secreta]. Em outubro de 1925 na província de Kiho o jornal “Dong-a Ilbo” informou sobre a prisão de uma dezena de ativistas da Liga Bandeira Negra. A LBN tinha sido fundado um ano antes pelos exilados no Japão, que militavam no grupo Futeishya junto a Parque Yeol. Entre os detidos da LBN se encontravam Hong Jin-yu, Seo Sang-kyeong, Shin Young-woo, Seo Jeong-sup, Han Byeong-hee, Lee Bok-won, Seo Cheoung-sun, Lee Chang-sik, Kawk Cheol e Lee Ki-yong.
No ano seguinte, o mesmo jornal noticiou a prisão de cinco jovens trabalhadores que divulgavam um manifesto muito semelhante ao desenvolvido por Shin Chae-ho.
Também em 1925, em Taegu, muitos anarquistas que retornavam do exílio no Japão formam organizações como a Liga da Verdade e da Fraternidade. A mesma, junto com outros grupos, como a Liga dos Revolucionários, começam a se articular organizativamente com a Sociedade da Juventude Negra de Tóquio. Em Anui, Mesan, formam-se a Liga da Amizade Negra de Changwon e o grupo de Apoio Mútuo da ilha de Jeju. Este grupo chegou a organizar cooperativas de artesãos e camponeses. De imediato muitos destes grupos foram infiltrados e seus militantes presos.
Para ver a extensão organizativa do anarquismo devemos destacar que em 1929 “Dong-a Ilbo” traz à tona a existência de um grupo clandestino de anarquistas entre eles se encontrava Lee Eun-song. A mesma contava com cem militantes organizados somente em Icheon, província Kwangwon. Para o mesmo ano, passou a ser conhecido que todos os membros do Movimento da Sociedade dos Artistas de Chanju eram anarquistas.
Inspirados principalmente por Mikhail Bakunin e Peter Kropotkin, toda uma geração de ativistas libertários coreanos tiveram uma influência e papel no que se tornaria inevitável até o fim da década, e que desaguaria na experiência ao norte, na Manchúria. Yu Ja-myeong (1891-1985), o já mencionado Shin Chae-ho (1880-1936), Hwae-young Lee (1867-1932), Lee Eul-kyu, Lee Jeong-kyu, Jeong Wha-am (1896 – 1981) e Jeung-ki Paik são alguns dos articuladores do processo de federação [organização federalista] dos núcleos anarquistas regionais. Suas produções teóricas, mas, principalmente, seus ímpetos por organizar o anarquismo no país os converteram nos principais orientadores para os militantes anarquistas . Como já mencionado, Shin Chae-ho de clara orientação bakuninista, entre outros textos, desenvolveu o “Manifesto da Revolução Coreana” em 1924. Esta consistia em programa de análise e ação anarquista no contexto de uma guerra de independência.
O programa inclui a participação ativa do anarquismo na luta anticolonialista contra o Império japonês, ao mesmo tempo em que desenvolve e aprofunda a luta contra a classe exploradora e dominante na Coréia. Neste sentido, o Manifesto foca-se em diferenciar uma revolução política de uma revolução social. Segundo o manifesto, uma revolução política somente muda o poder de mãos. “A última revolução foi uma revolução em que as pessoas continuavam a ser governados como antes, apesar de o poder de” A “ter sido transferido para a força de” B “pela chamada revolução, pois as pessoas eram escravas do Estado e dominada pelo poder da classe privilegiada que manteve o controle sobre o povo”.
Então, à frente de seu tempo, o manifesto enfatizou a realização de uma “revolução do povo” ou “revolução direta” feita pela gente para a gente mesma. No Manifesto os pobres e os soldados deveriam mudar estruturalmente a sociedade com a sua “firme determinação e seu próprio poder.” Falar de poder no anarquismo sempre foi uma coisa controversa, no entanto, para este tempo, é óbvio que os libertários coreanos estão falando de um “auto-poder”[poder próprio] das classes oprimidas. Neste ponto, o Manifesto trata de estabelecer a diferença entre base e conceitos no que se faz uma revolução e derruba qualquer abordagem de “nação”, reafirmando o conceito de “povo” e que “as pessoas não são tangíveis e nação não”.
Este escrito incitava ao anarquismo coreano à rebelar-se em armas para conseguir a liberdade serviu como base para a fundação em 1924 da Federação Anarquista Coreano (ou Hangug-eo Anakiseuteu Yeon-maeng coreano romanizado). Esta Federação foi formada por núcleos militantes anarquistas e se encontrava quase totalmente na clandestinidade por causa da perseguição do exército japonês. Em todas as regiões e províncias da Coreia haviam núcleos organizados da Federação. Os mais importantes foram em Seul, Taegu, Pyongyang, Icheon, bem como na Manchúria e entre os exilados na China e no Japão.
O trabalho dos militantes era produzir propaganda e jornais [prensa]  sobre a tendência e os diferentes âmbitos de organização. Vale destacar os jornais “Recapturar” (Talhwan), “A Conquista” (Jeong Bo) e “Boletim da Justiça”.
No entanto, a Federação sempre teve uma forte tendência para a ação social acima de todas as coisas. É assim que dedica a promover sindicatos, camponeses, estudantes e organizar a resistência à ocupação japonesa em células de autodefesa.
Em novembro de 1929, a Federação mudou seu nome para Federação Anarquista-Comunista da Coréia do FACK-(Jo-sun-san Gong Mu-jung-bu-eu-ja Ju-Yeon Maeng). É nessa mesma época e sob a influência de Kim Jong-jin que a FACK decide destinar mais recursos para alimentar uma revolução na Coréia do Norte e sul da Manchúria.
Militantes Anarquistas da FACK e chineses
Militantes Anarquistas da FACK e chineses

 

CONSTITUIÇÃO E DEFESA DA REGIÃO AUTÓNOMA SHINMIN

De acordo com FACK as condições para desenvolver um projeto revolucionário libertário foram dadas no sul da Manchúria na fronteira com China e no norte da Coreia (Coreia  do Norte).
A região da Manchúria foi disputada ao longo da história por reis e governantes japoneses, russos, chineses e coreanos. O mesmo, até a invasão final do exército japonês, era uma zona de cultivo agrícola especial de grandes planícies férteis onde o arroz e o milho eram partes da produção agrícola mais importante.
Após a extensão da ferrovia para Port Arthur (Rússia) a área tornou-se cada vez mais um terreno de disputa militar das potências do Oriente.
As classes dominantes do Japão, que viviam em 1920 um momento de auge de crescimento econômico e de expansão territorial para seu Imperio decidiram abocanhar-se permanentemente da conquista de toda a Manchúria, a fim de controlar as áreas politicamente hostis em disputa e, portanto, capaz cada vez mais expandir seu mercado e indústria para a região.
A área exata onde se assentava as bases da Comuna Autônoma de Shinmin estavam localizados onde alguma vez tinha sido Younggotap, capital do antigo reino Balhae e atualmente Jilin – uma das três províncias chinesas da Manchúria (ou Dongbei Pingyuan em chinês). Era uma área onde viviam grande parte da população coreana exilada sendo superior a 2 milhões. Aproveitando o componente puramente rural da população, o plano inicial da ação comunal era para formar coletivos voluntários de camponeses onde a educação seria acessível aos menores de 18 anos. Para os maiores responsáveis garantia-se a alfabetização e apoio educacional.
Vários veteranos de guerra já haviam garantido seu apoio a uma possível incursão libertadora. Um deles foi o general Kim Jwa-jin, relativamente jovem comandante com 39 anos, experiente militar conhecido por sua façanha na batalha de Chingsanli contra o exército japonês dez anos antes.
“Baekya”, como foi apelidado Kim Jwa-jin, além de ter um compromisso com a independência da Coreia do império japonês, possuía acima de tudo uma vocação de luta pela liberdade expressa em tenra idade quando aos 18 anos queimava arquivos de registro de escravos, liberando 50 famílias que posteriormente ocuparam terras. Esse evento marcou a primeira libertação de escravos da Coreia contemporânea. Além disso, anos mais tarde fundou Escola de Homyeong, dedicada a convocar as áreas mais castigadas da Coréia do Sul para participar no ensino através de uma educação racionalista.
Kim Jwa-jin sempre fora convidado por facções independentistas a fornecer apoio militar. Mas decidiu apostar politicamente no projeto da FACK, e em 1929, juntamente com outros generais, como Lee Bom-sok, dissolveu o Exército do Norte e passou a defender, como General do Exército de autodefesa, a zona de Shinmin, erguida já como uma Província Autônoma sem um Estado central. Seu papel naquele momento era de comandar o aspecto militar da resistência dos habitantes da comuna. Mas a preocupação com a questão social o fez aproximar-se do projeto emancipatório bem à fundo.
Neste contexto de resistência armada e revolução social é, que em agosto de 1929, estabelece-se o Conselho ou Assembléia de Auto-Governo dos Coreanos na Manchúria-AACM-(Han-jok-ji Cha Ryong-hap-hoe). Esta era uma associação administrativa baseada em “sob o principio de livre federação sustentada na liberdade espontânea do homem”. Este tipo de administração, que tinha pouco a ver com a formação de um novo estado – como era a esta altura a intenção do marxismo e outros correntes – permitiu a milhões de pessoas a constituir-se em uma organização federal descentralizada. Seus princípios foram completamente antagônicos ao capitalismo e socialismo estatal, e adquiriu certos graus de complexidade a medida que foi estruturado territorial e internamente.
A relação entre as comunidades e o sistema de decisão de cada uma, fez necessário a implementação de um tipo de federalismo libertário através da formação de três níveis de conselho: Conselhos Municipais ou de Aldeias (de acordo com cada localidade) Conselhos Distritais (de um conjunto de locais próximaas) e os Conselhos de Área ou Regionais (cobrindo a região com todos os distritos). Desta forma, eliminou-se a estrutura do Estado central, os Estados regionais e os Estados locais e se promoveram juntas de decisão de democracia direta.
Nas problemática de trabalho-produção e da planificação da economia e do aproveitamento dos bens sociais e naturais se praticaram inovadoras formas de funcionamento em bases a diferentes âmbitos do trabalho. Neste sentido, não sem inconvenientes, praticou-se a autogestão dos camponeses em grande parte dos serviços públicos e nas plantações de arroz e milho. Nesta instância, através de delegações da AACM (através de recursos captados por meio de desapropriações na cidade) chegavam grandes moinhos para processar arroz, alguns de até 1000 toneladas, o que representou um avanço tecnológico para a comunidade rural.
Cada necessidade vital ou problemas sociais exigiu a montagem de novos conselhos para resolve-los segundo as partes interessadas: Conselhos de Agricultura, Educação, Finanças, Propaganda, assuntos militares, Juventude, Saúde Pública, entre outros.
Embora a idéia original era de que através da educação, a sociedade como um todo iria conscientemente praticar as diferentes etapas e níveis de federalismo, o tempo limitado de guerra na região acelerou a formação destas estruturas. Um exemplo muito comum disso foi a transferência de delegados de uma cidade para outra para incitar a organização mais rápida de conselhos e assembléias do povo, pretendendo que fosse eleito rapidamente um delegado para a AACM. Assim, é lógico que você não poderia produzir um processo gradual de experimentação e prática militante adequada de apoio político de uma revolução social.
Através dos escritos não se pode ver claramente qual era o papel da mulher no município. As únicas referências que havia é que faziam o trabalho de contrabando de armas para a guerrilha e da constante publicidade.
CREPÚSCULO DE UM SONHO EMANCIPATÓRIO
O desenvolvimento organizacional e a expansão da Comuna de Shinmin fizeram com que os stalinistas coreanos e a burguesia nacionalista pró-japonesa começassem a ver com maus olhos esse novo movimento. Os bolcheviques viram especialmente na AACM uma ameaça que cooptava as suas “bases populares”. As áreas próximas a Yu Rim queriam ir para a batalha com o stalinismo para precaver-se de futuras contingências. Os guerrilheiros alinhados ao comandante Kim Jwa-Jin argumentaram que a disputa com o marxismo se daria quando dada a independência.
A 24 de janeiro de 1930, quando Kim Jwa-jin – já aos 41 anos – ajudava a reparar um moinho de arroz, segundo diziam financiado pelos anarquistas, um militante da juventude stalinista do PC coreano assassinou-o a sangue frio. Após o assassinato de Kim, o FACK começou a destinar todos os seus membros distribuídos pela Coréia, China e Japão a se concentrarem na área da Comuna. O mesmo aconteceu com todos os recursos.
A partir desse momento, simultaneamente, começaram sistematicamente a atacar as tropas japonesas na frente sul e as tropas stalinistas apoiadas pela URSS e do PC chinês (ex-aliado FACK) na frente norte.
Em 1931, os stalinistas começaram a enviar infiltrados para assassinar os líderes da FACK. No meio daquele ano, matam Kim Jong-jin, ideólogo da Comuna e líder da FACK. Os comunistas acreditavam que assassinando os líderes anarquistas (de acordo com eles os “dirigentes”), a comuna tenderia a cair logo.
O exército comunista, apesar de ter realizado os assassinatos perdeu terreno contra as tropas japonesas até o final de 1932. Até o final desse ano, o Império Japonês havia tomado o controle de toda a Manchúria, transformando-a em um estado fantoche impondo o velho imperador Puyi como governante.
Após a queda definitiva das últimas aldeias da Comuna em 1932, muitos ativistas tiveram de fugir da perseguição do exército japonês, mas também dos bolcheviques. Baek Jeong-gi permaneceu na clandestinidade organizando os “Corpos de Independência de Esquerda”, até que ele foi preso e encarcerado pelas tropas imperiais em Nagasaki, onde morreu de pneumonia crônica em 1934.
Yu Rim, líder da juventude anarquista, foi condenado a cinco anos e depois exilado na China. Posteriormente, voltaria a lutar contra a ditadura nacionalista da Coreia do Sul.
O resto da militância da FACK foi perseguida, quando não aniquilada, por toda a península.
A mesma área onde há três anos estava a Comuna de Shinmim recebeu a migração de empresários japoneses que promoveram um desenvolvimento comercial, na mineração e na indústria.
A população sobrevivente aos massacres do exército japonês e dos stalinistas começou a viver um regime de escravidão, desnutrição e assédio. Chegou-se, inclusive, a denunciar que as empresas japonesas que se estabeleceram no local fuzilavam os trabalhadores que estavam doentes, para evitar gastos com a saúde.
Terá sido em 1945 que o anarquismo coreano verá renascer das cinzas um grupo organizado, em Seul, através da fundação da Federação para a Construção de uma Sociedade Livre que promovia o controle das fábricas pelos operários.
Que os traços deixados por essa experiência de revolução social da Coreia do Norte não fechem um capítulo na história do anarquismo do Sudeste Asiático, mas sim levantem questões sobre os resultados produzidos durante o processo de coletivização rural com uma participação de 2 milhões de pessoas. Embora a experiência durou cerca de 30 meses e ocorreu em uma área comparável à Província de Misiones (Argentina) acreditamos que sejam tentativas válidas as de recriar fatos tão pouco conhecidos e divulgados pela cultura e informação ocidental. A não ser que se trate de impulso anarquista.
Durante a investigação – ainda aberta – viemos fazendo tentativas de aprofundar a comunicação e o compartilhamento de arquivos e dados com diferentes entidades e pessoas que hoje têm trabalhado sobre o assunto. A barreira é claramente a distância geográfica, língua, cultura e tempo ao tentar encontrar declarações contemporâneas feitas pelo anarquismo do Sudeste Asiático. Sabemos apenas que um dos últimos marcos na história do anarquismo coreano tem sido a reconstrução, no início dos anos 80, da Federação Anarquista na parte sul da península.
As tendências historiográficas orientais, como as ocidentais, – tanto marxistas como liberais ou nacionalistas – ou apagaram ou ignoraram as experiências históricas críticas e antagônicas à formação dos Estados Nacionais e das construções da cidadania e nacionalidade exigida pelos setores hegemônicos hoje em dia. Mas a luta enfrentada pelos anarquistas de hoje, devemos não só contrapor um projeto libertário como alternativa para o sistema de dominação, mas também recuperar do esquecimento os processos e projetos emancipatórios próprios, onde foram propostas mudanças sociais sem atalhos ou conchas vazias de liberdade. A sociedade igualitária proposta pela FACK e que foi realizada pela AACM não prosperou devido a sua incapacidade de defender-se a médio prazo. Certamente não foi capaz de deter o avanço de um império militar na expansão política e econômica, tendo em conta que só a Segunda Guerra Mundial fratricida – e depois de 10 anos – poderia tê-lo feito até certo ponto. No entanto, a experiência da revolução coreana libertária – no fundo da história de nossa classe – deve ser conhecida e discutida na esquerda, e, obviamente, aprofundada. Os curtos 20 anos de revoluções de impulso libertário (1917-1936), o que alcançaram, sucessos e fracassos, devem servir-nos como guia e inspiração na hora de ativar, refletir e implementar a mudança social que definitivamente conseguirá operar uma sociedade sem hierarquias. Desta forma, acreditamos estar em igual condições que nossos velhos companheiros da FACK.
*Originalmente publicado em espanhol no link: http://www.anarkismo.net/article/23228

 Traduzido por Tradução Guilherme Wagner :http://www.centrodosocialismo.com.br/2013/07/uma-historia-escondida-revolucao.html